Maria Lúcia teve como objetivo na vida cuidar dos outros. Seja como filha, irmã, mãe, avó, bisavó, tia ou amiga – ela sempre estava pronta para ajudar. Sua humildade era comovedora. De modo que era impossível guardar alguma mágoa dela. Ela também não guardava mágoa de ninguém. Praticou o perdão como poucos. Muitas vezes eu não compreendia o por que dessa sua postura. Ora, como podia continuar sendo amiga de quem havia agido mau com ela? Achava-a um tanto ingênua, mas era na verdade, bondade. Coerente com sua fé era como se dissesse: - quem nunca errou que atire a primeira pedra. E ela errou, como ser humano que era. Como todos nós erramos. Mas nem sempre reconhecemos nossos erros.
Filha de Jovelina e Graciliano, Maria Lúcia nasceu na Zona Rural de Miracema do Norte, nos idos de 1956. E como toda criança que nasce no campo numa família de pequenos camponeses teve que começar a trabalhar cedo. Carregava na memória uma infância de travessura e uma juventude animada, sobretudo nos festejos de Nossa Senhora de Fátima no Bairro Correntinho. Por volta dos seus 19 anos deu a luz ao seu primogênito. O pai da criança não quis assumir, foi obrigada então a se casar com outro homem para evitar o falatório de uma sociedade conservadora que não via com bons olhos uma mãe solteira.
O casamento arranjado não durou muito, ela então voltou para casa dos seus pais. Pouco tempo depois conheceu um jovem viúvo por quem se apaixonou e não demorou para que fossem morar juntos. Ele assumiu o filho dela como se fosse dele, ela as filhas dele como se fosse dela. Depois vieram os filhos deles – 7 ao todo, no final escaparam 5, entre eles, eu.
Para sustentar a família o trabalho no roçado era a única alternativa. As dificuldades eram muitas, os recursos poucos. Mas o suficiente para sobrevivência. Em busca de melhoras deixaram a roça e mudaram para o bairro Correntinho e depois para baixa Preta – na rua Maranhão.
A vida não continuava fácil. Para ajudar o marido no sustento da casa, ela trabalhava de diarista e lavava roupa para fora. Isso sem deixar de cuidar dos filhos e da casa. 14 anos depois chegou ao fim o seu casamento com meu pai. Ela conhecera um novo amor e ao lado dele partiu para construir uma nova vida.
Essa nova vida teve início numa chácara as margens do Rio Tocantins no município de Lajeado. Contava ela que no final da década de 1980, quando se dirigia a Porto Nacional para uma consulta médica, encantou-se pelo então povoado de Lajeado. E disse a meu pai que um dia ainda iria morar ali. O seu sonho se realizou e em Lajeado construiu uma importante história, fez muitas amizades e acabou de criar os filhos.
Plantar roça, cultivar vazantes, pescar – eram as atividades desenvolvidas para a subsistência da família. E ela sempre a frente, organizando mutirões, fazendo comida, cuidando de todos.
Cerca de 15 anos depois chegava ao fim mais um casamento. Agora ela já morava no centro de Lajeado. A maioria dos filhos já tinha se casado e viviam em Goiânia. Com a parte de divisão dos bens ela comprou uma casinha no setor Aeroporto (em Lajeado), conseguiu se aposentar e assim ia tocando a vida, fazendo algum bico aqui e ali para ajudar no orçamento.
Quis o destinado que nos últimos anos de sua vida pudesse desfrutar de um certo conforto – uma casinha melhor com os objetos que ela sempre sonhara. Tornou-se uma andarilha dividindo a vida entre Goiânia, Lajeado e Miracema. Gostava de passear mas sem esquecer sua responsabilidade como filha cuidando dos seus pais – mesmo com a idade avançada e os problemas de saúde.
Enfim, essa é em breves linhas a estória desse ser extraordinário que foi Maria Lúcia. Você camarada que não a conheceu e está lendo essa linhas dirá que não tenho a devida insenção para fazer tal afirmação. Mas aqueles que a conheceram testemunharam ao meu favor dizendo que não há exagero nenhum.
***
Hospital regional de Miracema, manhã de segunda-feira, última semana do mês de Julho. Eu já estava me preparando mentalmente para acompanha-la até Palmas – onde certamente encontraria melhores condições de tratamento. A noite anterior tinha sido difícil, por vários momentos imaginei que ela não veria a luz do dia. Mas agora, apesar do quadro grave, parecia que seria mais uma batalha (como outras anteriores) que conseguiríamos superar. Não foi assim, tive que encarar o que mais temia – a notícia de que minha mãe tinha partido – de todos os golpes que a vida poderia me dar esse certamente foi o pior. Não pude conter as lágrimas. Lhe dei um último olhar e no seu semblante havia um ar de repressão tal como Sócrates (no seu leito de morte) aos seus discípulos. Era como se dissesse: - Ora, quem na vida agiu virtuosamente, não há o que temer quando morre.
Todo mundo ama um dia
Todo mundo chora
Um dia a gente chega
E no outro vai embora...
Almir Sater e Renato Texeira
Pedro Ferreira Nunes. Casa da Maria Lúcia. Lajeado-TO. Lua Crescente. Verão de 2022.
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