No entanto, pelo espaço de tempo reduzido, era necessário fazer escolhas. Daí que optei por trabalhar uma obra específica – o que nos possibilitava um estudo mais aprofundado – essa obra foi o livro “O cortiço”. Mesmo assim, ainda era muita coisa para o pouco tempo de horas aulas semanais que tínhamos. De modo que para garantir que de fato a leitura, a análise e discussão fosse feita pelos estudantes, optamos por ficar no capítulo 1 – que no nosso ponto de vista já trazia elemento suficiente para uma boa discussão sobre a questão ética – objeto de conhecimento que estávamos desenvolvendo no Componente Curricular de Filosofia.
Para nortear a leitura e análise da obra elaboramos algumas questões. As duas primeiras se referiam a quem era o autor e o contexto que ele produziu a obra (1- Quem é o autor? Faça um breve resumo da sua biografia; 2- Em qual contexto histórico a obra foi escrita?). Num exercício hermenêutico, são questões fundamentais para compreensão do livro. As questões seguintes referiam-se a obra propriamente (3- Do que trata a obra?; 4- Quais são os principais personagens?). Ainda que o exercício se resumia a leitura e análise do capítulo 1 do livro, era questões possíveis de ser respondida. Por fim, as duas últimas questões exigia exercício de pensamento (5- Como você avalia a conduta ética dos personagens?; 6- O que a obra nos ensina sobre o Brasil?). Para responder essas questões, sobretudo a quinta, eles deveriam utilizar a base teórica que aprenderam nas aulas de introdução a Filosofia Moral.
Num contexto em que o hábito da leitura não é muito comum, não houve surpresa da minha parte quando encontrei resistência dos alunos em fazer a leitura e responder a atividade proposta. Porém no decorrer da leitura foram sendo fisgados pela escrita brilhante do Aluísio Azevedo ao nos apresentar João Romão, Bertoleza, Miranda e Dona Estela. Eu me divertia ouvindo o comentário deles sobre os personagens e intervia pontualmente esclarecido algum termo ou contexto histórico – como por exemplo, o que era um escravo de ganho – situação da Bertoleza.
A escolha do livro “O cortiço”, e do capítulo 1 especificamente, não foi aleatória. Além de ser uma obra prima da nossa literatura, nos permite problematizar questões importantes sobre a nossa formação enquanto povo. Escrito no pós-independência, O cortiço é considerada a obra inaugural do movimento naturalista no Brasil, que entre outras questões defende uma visão antropológica de que o homem é produto do meio.
“e, naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como lavas no esterco”.
Eis a descrição que o nosso escritor faz do Cortiço (Ou seria do Brasil?). Partindo da tese naturalista é possível imaginar que tipo de gente sairia dali. Noutra passagem ele descreve o português João Romão (um bom exemplo da elite brasileira?):
“Sempre em mangas de camisa, sem domingo nem dia santo, não perdendo nunca a ocasião de assenhorear-se do alheio, deixando de pagar todas as vezes que podia e nunca deixando de receber, enganando os fregueses, roubando nos pesos e nas medidas...”.
Como esperávamos, essas questões foram ressaltadas no exercício feito pelos estudantes. Eles conseguiram capitar bem, assim como relacionar a conduta ética dos personagens com a nossa realidade.
Depois da devolutiva deles, fiz uma análise geral da obra problematizando algumas questões, relacionando ao contexto histórico em que o livro foi publicado e as questões que estavam em debate na sociedade brasileira – questões que levaram, por exemplo, a uma política, por parte do Estado brasileiro, de branqueamento da população através do incentivo da imigração Europeia para o Brasil. Ao final, o nosso exercício de leitura critica, mostrou-se uma experiência exitosa. Além de pensarmos o nosso país a partir da literatura, estimulamos a leitura e a crítica.
Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. Atua como Professor da Educação Básica no CENSP-LAJEADO.
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