segunda-feira, 20 de novembro de 2023

bell hooks e o amor na luta contra o racismo



- Amar é um ato de resistência. Você provavelmente já ouviu essa frase por ai. Para bell hooks não se trata de uma retórica vazia. Essa filósofa estadunidense acredita mesmo que amar é um ato de resistência. No entanto para que essa frase não se torne uma retórica vazia. Primeiro: É preciso compreender o que é o amor. Segundo: Entender o seu poder transformador. Em relação a esse segundo. Para entender o poder transformador do amor é necessário amar. Ou melhor – se amar em primeiro lugar. O que não é fácil para aqueles que sofrem opressão,  que são inferiorizados. É o caso do povo preto - em especial as mulheres – vítimas do regime escravocrata. É portanto para essas que bell direciona o seu poderoso discurso em defesa do amor como um instrumento político na luta contra as opressões. Mesmo compreendendo que a escravidão afetou a capacidade de amar dos negros, sobretudo das mulheres. Ela acredita que o amor pode curar – tornando os indiviudos mais fortes na luta pela construção de um mundo melhor. 

Mas voltemos ao início quando dissemos que para que a frase: - amar é um ato de resistência. Não caia numa retórica vazia. Precisamos compreender o que é o amor. bell seguirá uma definição do amor como “uma intenção e uma ação”. Ou seja, o amor não é apenas sentimento. É também ação. Se eu não expresso o que sinto por meio de atos. Então não estou praticando o amor. É aquela velha história – falar ti amo é fácil. Mas a nossa filósofa lembra que o amor é mais do que palavras. Nesse sentido ela nos diz que é “preciso reconhecer que a opressão e a exploração distorcem e impedem nossa capacidade de amar”. E para fundamentar sua fala ela trás o exemplo da escravidão – que criou, segundo bell, no “povo negro uma noção de intimidade ligada ao sentido prático de sua realidade”. Ou, seja, num contexto de violência extrema reprimir os sentimentos era uma questão de sobrevivência. 

Não nos falta obras para entendermos o que bell está falando. Mas não poderia deixar de citar algumas como os filmes: 12 anos de escravidão (EUA) e Vazante (BRA). Gosto também dos poemas do Castro Alves. Entre tantos destacaria “a canção do africano” (1863), que destaco aqui os versos finais:

O escravo então foi deitar-se,
Pois tinha de levantar-se
Bem antes do sol nascer,
E se tratasse, coitado,
Teria de ser surrado,
Pois bastava escravo ser.

E a cativa desgraçada 
Deita seu filho, calada,
E põe se triste a beijá-lo,
Talvez temendo que o dono
Não viesse, em meio do sono,
De seus braços arrancá-lo”.

É de que se compreender o por que que os indivíduos que lutam pela sobrevivência não deem espaço para o amor. Porém, mesmo num contexto de extrema dificuldade, bell defende ser possível encontrar espaços para amar. E mais. Para essa filósofa, amar é uma condição sine qua non para irmos além da sobrevivência. Desse modo ela enfatiza que o autoconhecimento e o autocuidado são dois aspectos fundamentais para que não nos tornemos pessoas frágeis. De acordo com suas palavras “a arte e a prática de amar começam com a nossa capacidade de nos conhecermos e afirmar”. E quando conhecemos a nós mesmo. Nos aceitando – e não se deixando afetar pelo que os outros acham ou dizem. Teremos mais força não só apenas de seguir em frente mais também de contribuir com aquilo que acreditamos.

Nossa filósofa encerra sua reflexão ressaltando que “quando conhecemos o amor, quando amamos, é possível enchergar o passado com outros olhos: é possível transformar o presente e sonhar o futuro”. Para ela esse é então o poder do amor – o amor cura. Essa cura não é de fora para dentro. Mas o contrário. Quando, através do amor, conseguimos curar nossas feridas internas, nos tornamos mais fortes na luta contra toda forma de opressão.

Para finalizar, talvez desviando do nosso foco inicial ou não, a partir dessa leitura da bell hooks a consciência negra acabou fazendo mais sentido para mim. Diante disso não podemos deixar que ela se torne apenas mais uma data no nosso calendário. Mas como um momento de olhar com outra perspectiva para nossas raízes – com suas heranças, buscando assim transformar o presente e sonhar um futuro sem racismo – em que as vidas negras realmente importa.

Pedro Ferreira Nunes – Professor da Educação Básica. Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. 

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Na oficina de Narrativas Imagéticas

Para Jádyla Patrícia 


Uma das atividades da oficina de Narrativas Imagéticas ministrada pela Jádyla foi o compartilhamento de uma fotografia acompanhada de uma legenda sobre: 1- O que vejo; 2- O que sinto e 3- O que mudaria. Ao ver os estudantes compartilhar suas memórias me empolguei e também decidi compartilhar as minhas. Imediatamente me veio na cabeça a lembrança de uma fotografia minha com minha mãe tirada numa noite fria de festa junina em Trindade (GO).

Bem, a fotografia eu já tinha, me faltava pensar o que via, o que sentia e o que mudaria. 

A imagem da fotografia mostra duas pessoas sorridentes, felizes. E era sempre assim. O que me fez lembrar de tantos momentos que vivemos juntos. Daí não me veio outra coisa na cabeça se não colocar que o que sentia ao ver aquela imagem era saudade e gratidão. Saudades de uma convivência amiga, das conversas, do companheirismo, dos sonhos e projetos que divididiamos. Por outro lado a gratidão de ter tido o privilégio de tê-la na minha vida. De tê-la proporcionado pequenas alegrias e termos vividos momentos inesquecíveis. Diante disso não poderia concluir de outra forma se não dizendo que não mudaria nada. Pois a nossa relação era tão bonita e a convivência tão tranquila que não poderia me sentir de outra forma senão agradecido.

Depois dessa experiência fiquei pensando como uma dinâmica aparentemente simples pode mexer tanto com  a gente. No meu caso me proporcionou um olhar diferente para minhas memórias com minha mãe. A partir de agora não só aquela fotografia compartilhada vai me fazer sentir gratidão. Mas todas as outras que me farão lembrar da nossa convivência. 

Não sei se os demais participantes da oficina tiveram uma experiência tão profunda assim. De todo modo, não tenho dúvida de que todos foram afetados de alguma forma ao fazer esse exercício de olhar para suas memórias de forma reflexiva. 


Diante disso ficamos contentes em termos proporcionado a realização da Oficina de Narrativas Imagéticas para estudantes do Ensino Médio do CENSP Lajeado, numa parceria com o curso de Teatro da UFT. Além dessa atividade em especial, os participantes puderam também refletir e vivenciar outras experiências como uma aula-campo por lugares (antigo prédio da escola municipal, Praça das Crianças e Praça dos Buritis) num exercício de memória coletiva sobre a cidade.

Nesse sentido as atividades da Oficina de Narrativas Imagéticas foram de encontro com a análise que o Michael Pollak faz da relação entre memória e identidade social. Inclusive, Pollak foi um dos autores utilizado pela Jádyla nas aulas teóricas em preparação as atividades práticas. 

Um aspecto que Pollak (1992) ressalta sobre a memória é que ela tem um caráter mutável ou seja,  ela está em constante transformação. O olhar que temos hoje para um determinado fato do passado tende a se modificar com o passar dos anos. E essa mudança se dá não apenas numa perspectiva individual, mas também coletiva. Pois para o nosso autor (1992) a memória não diz respeito apenas ao indivíduo, ela é produto da coletividade. Por isso que ele ressalta que a memória é constituída tanto das lembranças do que vivemos pessoalmente como por tabela. Ou seja, “são acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não.” Além dos acontecimentos nosso autor também pontua as pessoas (personagens) e os lugares como parte constituinte da memória. 


Na aula-campo que realizamos na oficina de Narrativas Imagéticas nosso objeto foi lugares. E um lugar bastante especial que visitamos foi os escombros do antigo prédio da Escola Municipal Sebastião de Sales Monteiro onde alguns dos que estavam ali já haviam estudado (ou mesmo os que não estudaram mais trazem alguma lembrança a partir da memória de seus familiares). Aliás, esse foi outro momento da oficina que fui instigado a fazer uma imersão ao meu passado, já que eu havia estudado naquele prédio. A sensação que senti durante a visita me fez lembrar o poema Velha Chácara, do Manoel Bandeira:


A casa era por aqui...
Onde? Procuro-a e não acho.
Ouço uma voz que esqueci:
É a voz deste mesmo riacho.

Ah quanto tempo passou!
(Foram mais de cinquenta anos.)
Tantos que a morte levou!
(E a vida... nos desenganos...)

A usura fez tábua rasa
Da velha chácara triste:
Não existe mais a casa...
— Mas o menino ainda existe.


A escola já não existe. Mas o estudante sonhador (que queria mudar o mundo) sim. 

Enfim, com isso concluímos ressaltando mais uma vez a riqueza que foi essa oficina ministrada pela Jádyla. Acredito que atividades como essa são fundamentais para uma formação mais humana dos nossos estudantes – contribuindo tanto para o autoconhecimento como para sua identidade social enquanto parte de uma determinada comunidade. Acreditamos também que atividades como essa amplia o leque de possibilidade dos nossos estudantes quanto a sua formação profissional. 

Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. 


sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Poema: Mulher tatuada

Loira, preta, 
india ou mulata.
Eu prefiro as tatuadas,
Eu prefiro as tatuadas.

Europeia, Latina, 
Africana ou asiática.
Eu prefiro as tatuadas. 
Eu prefiro as tatuadas. 

Gorda ou magra, 
Alta ou baixa.
Eu prefiro as tatuadas. 
Eu prefiro as tatuadas. 

Doutora, camponesa
Ou operária. 
Eu prefiro as tatuadas. 
Eu prefiro as tatuadas. 

Que tenha grana 
Ou seja rodada.
Eu prefiro as tatuadas. 
Eu prefiro as tatuadas. 

Comunista, anarquista, 
Ou alienada. 
Eu prefiro as tatuadas. 
Eu prefiro as tatuadas. 

Roqueira, hipponga
Ou punkada. 
Eu prefiro as tatuadas. 
Eu prefiro as tatuadas. 

Católica, ateia 
ou desligada.
Eu prefiro as tatuadas. 
Eu prefiro as tatuadas. 

Seja assim,
Seja assada.
Eu prefiro as tatuadas. 
Eu prefiro as tatuadas. 


Pedro Ferreira Nunes - Apenas um rapaz latino-americano que gosta de ler, escrever, correr e ouvir Rock in roll. 

domingo, 5 de novembro de 2023

Now and Then e o belo

O que faz uma canção nos afetar tão profundamente? Sobretudo uma canção cantada numa língua que não é a sua. Sempre que isso acontece tenho a curiosidade de buscar alguma tradução para entender o que está sendo enunciado e algumas vezes somos surpreendidos. Mas no caso de Now and Then dos The Beatles, não. Melodia e letra se complementam de forma perfeita. Ou utilizando um conceito da estética – sublime. Por isso que qualquer pessoa com sensibilidade estética não pode negar estar diante de algo belo.

 Alguns vão dizer que é por causa dos The Beatles e toda a áurea que envolve a banda. Todos os membros desse grupo britânico de rock foram transformados em ícones da cultura pop. E o John Lennon,  por exemplo, numa lenda. Mas o fato é que do ponto de vista cultural, e por que não político, não é possível compreender o século XX – tanto no campo da música como comportamental – sem falar na obra construída pelo quarteto de Liverpool.  Desse modo, não é de se admirar que um lançamento inédito da banda após tantos anos cause tanta euforia. Ainda mais pelas circunstâncias – John Lennon e George Harrison,  mortos. E Paul McCartney e Ringo Starr já se aproximando da aposentadoria. De modo, que ao que tudo indica esse será o último lançamento inédito da banda – que foi possível graças a registros deixado tanto por John como por Harrison. Em resumo, tudo corrobora para que a composição se torne icônica.

Todo esse contexto pode até favorecer do ponto de vista publicitário a obra. Mas não é isso que a torna algo belo. Para compreender essa afirmação um texto do filósofo estadunidense John Hospers sobre atitude estética é muito oportuno. 

De acordo com esse autor (2016) “quando contemplamos esteticamente uma obra de arte ou a natureza, fixamos-nos apenas nas relações internas, ou seja, no objeto estético e nas suas propriedades, e não na sua relação com nós próprios, nem se quer na sua relação com o artista que o criou ou com o nosso conhecimento da cultura em que surgiu”. Ou seja, devemos ter uma postura neutra ao contemplar esteticamente uma obra de arte – uma tarefa um tanto difícil. Diria quase impossível. Por isso que muitas vezes julgamos uma obra de arte a partir de uma perspectiva moral ou cognitiva.

Ainda de acordo com Hospers (2016) o valor estético de uma obra de arte está na sua unidade: “O objeto unificado deve conter dentro de si um amplo número de diversos elementos, onde cada um contribui em alguma medida para a total integração de todo unificado, de modo a que não exista confusão apesar dos elementos díspares que o integram. No objeto unificado, todas as coisas são necessárias, e nenhuma é supérflua”. Ou seja, não é possível alterar nenhuma vírgula sem que isso prejudique o todo.

Todos os elementos internos que compõem Now and Then formam uma unidade única. Mostrando que estamos diante de uma obra de arte de um enorme valor estético. Ou seja, um clássico. 

Mas como não somos seres puramente racionais não poderia deixar de destacar o aspecto emotivo da canção – que a mim me remeteu a ausência, ao luto. A melodia em si já nos remete a uma época que se foi. E a letra então vem afirmar esse sentimento nos fazendo recordar de outros invernos e de pessoas que aqui já não estão – mas que sobrevivem na nossa memória.

“De vez em quando,
eu sinto a sua falta.
Oh, de vez em quando,
eu quero que você esteja lá para mim.
Sempre retorne para mim...”

Desse modo somos levados a refletir sobre a vida. E o clip da canção (que é uma obra de arte a parte)  comandado por ninguém menos que Peter Jackson (O Senhor dos Anéis ), remete mais ainda a isso ao abordar tempos distintos e conciliar juventude com maturidade – passado com presente. Enfim, é para ouvir, ouvir e ouvir. E agradecer a oportunidade de apreciar obras desse nível em tempos como os nossos em que o supérfluo domina.

Pedro Ferreira Nunes – Um rapaz latino-americano que gosta de ler, escrever, correr e ouvir Rock in roll.

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Byung-Chul Han e a Sociedade do Desempenho

“Hoje o indivíduo se explora e acha que isso é realização”. Essa frase é do Filósofo Sul-Coreano Byung-Chul Han, autor de obras como “Sociedade do Cansaço”, “Morte e alteridade”, “O que é poder?” entre outros. A frase em questão pode ser melhor compreendida a partir da leitura do seu texto intitulado de “Sociedade do Esgotamento” – onde ele afirma que a Sociedade da Disciplina apontada por Foucault se tornou primordialmente uma sociedade do Desempenho.

Como isso se deu? Antes de responder essa pergunta precisamos compreender o que seria a Sociedade Disciplinar. Para responder precisamos recorrer ao filósofo francês Michel Foucault. Mais especificamente a sua obra “Vigiar e Punir” (1975) – onde ele analisa o surgimento das prisões. Chegando a conclusão que a sociedade moderna inaugura novas formas de disciplinar o indivíduo – não mais utilizando o suplício característico do período anterior. Até por que o novo modo de produção precisa de corpos produtivos – corpos dóceis – por meio de um aparato disciplinar onde a estrutura panóptica permite um estado de vigilância contínuo. Essa lógica está presente em toda a sociedade – nas escolas por exemplo através da imposição de toda uma rotina por meio de um regimento escolar que determina horários, formas de se vestir e comportar. E caso aja alguma transgressão vem a punição. Ou seja, a lógica do vigiar e punir – que tornou-se até mais eficaz com os aparelhos eletrônicos de monitoramento.

Han por sua vez vê uma mudança de paradigma. Para esse filósofo não estamos mais numa sociedade onde a disciplina é o fator primordial, mas o desempenho. Óbvio que para alcançar determinado objetivo é necessário disciplina. Porém essa não é mais imposta por um fator interno, mas assimilada pelo próprio indivíduo como algo necessário para alcançar uma meta.

“A sociedade de hoje não é mais primordialmente uma sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho, que está cada vez mais se desvinculando da negatividade das proibições e se organizando como sociedade da liberdade” (2017, p. 79).

Enquanto na sociedade disciplinar não há liberdade. E são imposta aos indivíduos uma série de “tu não deves” – proibições. Na sociedade do desempenho o sentimento é de liberdade.

Marcuse já apontava para esse fato ao analisar a ideologia da sociedade industrial e a construção do homem unidimensional. Para o filósofo Frankfurtiano, os indivíduos acreditam ser livres para fazer escolhas quando não são. Ele ressalta a introjeção de valores que faz com que os indivíduos auto se explorem. Por isso, ele não fala mais em alienação, mas em autoalienação. Marcuse chegará a conclusão de que sob um manto de liberdade, a sociedade atual é tão autoritária como a anterior.

Retornemos a Han. Para esse filósofo o sujeito atual tem como lema: liberdade e boa vontade. Desse modo ele não se submete a um trabalho obrigatório. E nem se move a partir de deveres ou da relação com o coletivo. “Ele ouve a si mesmo. Deve ser um empreendedor de si mesmo. Assim ele se desvincula da negatividade das ordens do outro”. Conseguindo assim emancipar-se e libertar-se do outro. 

Nosso filósofo aponta porém que essa “dialética misteriosa da liberdade transforma essa liberdade em novas coações” (2017, p. 83). O ponto chave desse processo é a transformação do indivíduo no seu próprio algoz. Ele coage a si mesmo a ter um determinado desempenho – forçando-se a produzir cada vez mais sem já mais alcançar um ponto de repouso da gratificação. Pois essa se dá na relação com o outro. Assim “vive constantemente num sentimento de carência e culpa” (2017, p. 87). O que leva-o a um estado de adoecimento mental.

Para Han (2017) o sujeito do desempenho só se realiza na morte. Ou seja, a sua realização é a autodestruição:

“O sujeito do desempenho esgotado, depressivo está, de certo modo, desgastado consigo mesmo. Está cansado, esgotado de si mesmo, de lutar consigo mesmo. Totalmente incapaz de sair de si, estar lá fora, de confiar no outro, no mundo, fica se remoendo, o que paradoxalmente acaba levando a autoerosão e ao esvaziamento” (2017, p. 91).

As palavras de Han bate forte como um soco no estômago. Elas nos mostra um fato que está aí mas que, submersos nesse contexto, nos negamos a ver. E não é fácil mesmo. Há todo um aparato tecnológico (o mundo digital) desempenhando um papel central nesse sentido. Logo as perspectivas de mudanças não são animadoras. Mas pensando dialeticamente não podemos dizer que é impossível. Ainda que o horizonte nos parece cada vez menos animador. 

Pedro Ferreira Nunes – Professor da Educação Básica. Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. 

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Juvenal Savian Filho: Somos ou estamos na Natureza?

O modo como nos relacionamos com a Natureza tem a ver com a nossa visão acerca dela. É a reflexão que nos propõe o filósofo Juvenal Savian Filho ao abordar essa questão no seu livro “Filosofia e filosofias – existências e sentindos”. Nessa obra ele nos aponta duas visões que foi se formando ao longo da história: uma que parte da ideia da Natureza como uma máquina e a outra como um organismo vivo. Nas linhas a seguir vamos conhecer melhor essas visões e refletir sobre as suas consequências. 

O primeiro aspecto para o qual Savian Filho (2018) chama atenção é a de que ao mesmo tempo  que nos colocamos entre os demais animais, nos destacamos do seu conjunto. Isto é, “tomamos o ser humano como parte da Natureza e marcamos sua diferença em meio ao conjunto”. Somos um animal, mas um animal que tem sentimento e pensa. Nosso autor ressalta porém que “há um risco em descolar os seres humanos do grupo dos outros seres, o risco de encararmos a Natureza como uma casa que é nossa, mas da qual não nos sentimos realmente membros” (2018, p. 230). 

Por outro lado há aqueles que defendem uma integração total a natureza, voltando a um estado primitivo. Para Savian Filho (2018) é preciso buscar uma síntese entre essas duas posições. Levando em consideração a crise ambiental e suas consequências para o planeta terra e aos que aqui vivem.

Na contemporaneidade, a questão ambiental vem sensibilizando e mobilizando parte significativa da população, sobretudo a juventude. Mas ainda é muito forte a visão da Natureza como uma máquina.  Isto é,  como algo que está a nosso serviço, que quando sofre algum problema pode ser consertado. 

Savian Filho (2018) salienta que a ideia da Natureza como máquina surgiu do seu funcionamento mecânico e independente. A partir daí filósofos e cientistas passaram a pensar que as próprias leis da Natureza eram matemáticas, utilizando inclusive como metáfora a dinâmica de um relógio. Entre os pensadores que consagraram essa metáfora destacam-se: Galileu Galilei, Johannes Kepler e René Descartes.

Com a revolução industrial, no século XVIII, temos uma imposição dessa visão mecanicista acerca da Natureza. Podemos então afirmar que ela caminha em consonância com o modo de produção capitalista. 

Savian Filho (2018) salienta que a perspectiva mecanicista gerou importantes avanços, proporcionando uma melhor qualidade de vida para população, por outro lado os problemas ecológicos decorrente desse modelo não podem ser negados, levando a uma crise climática que tem se agravado cada vez mais diante da inércia dos Governos.

Em contra partida a visão mecanicista temos a ideia da Natureza como um organismo vivo. Desse modo, quando destruímos a Natureza, estamos destruindo a nós mesmos. Pensadores como Leonardo da Vinci, Friedrich Schelling e Alfred North Whintead, são alguns dos que defendem essa visão que tem ganhado bastante força na contemporaneidade, sobretudo a partir do movimento ambientalista e da luta dos povos originários. 

Porém o modelo mecaniscita permanece como hegemônico, sobretudo por que de acordo com o nosso autor (2018) há interesses comerciais que o sustenta. Isto é, há toda uma economia que opera a partir dessa lógica de desenvolvimento que enxerga a Natureza como um objeto que nos fornece recursos ilimitadamente.

Savian Filho (2018) salienta que do ponto de vista da Filosofia, não cabe a defesa de uma ou de outra visão acerca da Natureza. Mas analisar as razões que as fundamentam. Porém, na minha perspectiva, ao fazermos essa análise certamente não ficaremos numa postura neutra.

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. Atua como Professor da Educação Básica no CENSP-LAJEADO.

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Resenha: Era uma vez... na Barra da Aroeira

Para quem nasceu no sertão tocantinense ou nas barrancas do Rio Tocantins, uma das lembranças da infância era quando sentavamos ao redor de uma lamparina para ouvir os mais velhos contar estórias de troncoso ou dos tempos da caroxinha. Eram contos da tradição oral que iam sendo passadas de geração em geração – que nos encantava e alimentava nossas mentes de crianças. Uma mostra dessa tradição pode ser conferido no livro Era uma vez... na Barra da Aroeira, organizado por Irma Galhardo.

Publicado em 2022, a obra trás uma coletânea de contos tradicionais da Comunidade Quilombola da Barra da Aroeira, localizado no territorio do Estado do Tocantins. São contos oriundos da cultura oral que perpassa pelo mundo fantástico, o enfrentamento de desafios, a superação de dificuldades, lições morais entre outros. E partir do trabalho de lapidação da Irma Galhardo, referência literária no Tocantins, podemos dizer que estamos diante de um clássico – que inclusive foi contemplada com o Prêmio Aldir Blanc Tocantins. 

Na apresentação do livro, Amanda Fernandes – Doutora em Letras pela USP. Chama atenção para o fato dos 13 contos presente na coletânea terem como porta voz – mulheres. Diante disso ela afirma que “as mulheres, cuidadoras ancestrais da infância,  são as grandes guardiãs dos contos tradicionais” (2022, p. 15). Lembrando da minha infância isso de fato se confirma. Geralmente quem nos contava essas estórias eram mulheres – minha avó Jovelina, minha mãe Maria Lúcia, Dona Caetana e Dona Júlia.

Ao final da obra a gente pode conhecer visualmente essas guardiãs dos contos tradicionais do Barra da Aroeira – Diolina Fernandes Rodrigues, Erminia Rodrigues, Andressa Rodrigues e Salviana Rodrigues. 

Já a organizadora da obra dispensa maiores apresentações. Como já dissemos, é uma referência literária no Tocantins. Já tendo publicado diversas obras entre elas o clássico Epopéia Tocantinense. Ela é também Mestre em Literatura pela UFT e em Cultura Popular pelo Ministério da Cultura. Além de ser uma divulgadora da literatura tocantinense por meio do Projeto Tocantins Poético e Lendário. 

A capa do livro de autoria do Danilo Itty merece uma menção especial – um belo desenho que mostra a beleza afro. O livro também conta com um pequeno glossário e um texto da Professora Maria Aparecida de Oliveira Lopes – da Universidade Federal do Sul da Bahia – que nos situa a Comunidade Quilombola Barra da Aroeira.

A leitura vale pela obra completa, mas para destacar um que me lembrou um personagem icônico da literatura brasileira – João Grilo do Auto da Compadecida, destacaria O rei e o esperto, narrado pela Andressa Rodrigues. A estória narra o desafio que o rei impõe a um jovem apaixonado que quer se casar com sua bela filha. Nessa narrativa encontramos o exemplo da inteligência do povo para superar os obstáculos. Já no O rico e o pobre, narrado pela Diolina Fernandes Rodrigues, temos uma lição moral típico das grandes fábulas, ou seja, uma lição de onde a ambição pode nos levar e a mensagem de que a maldade que fazemos com o outro pode se voltar contra nós. 

Além de já ter lido a obra. Também trabalhei a mesma com estudantes dos anos finais do Ensino Fundamental. E a reação deles durante a leitura me surpreendeu. Eu tinha consciência da importância da obra, por isso da escolha em trabalha-la. Mas não tinha noção da potência. E foi o envolvimento dos estudantes que me mostrou isso.

Diante dessa experiência não só recomendo a leitura do mesmo, como também recomendo a utilização do livro em aulas diversas – arte, literatura, história, geografia e projeto de vida. Tanto no Ensino Fundamental como no Ensino Médio. 

Por Pedro Ferreira Nunes – Professor da Educação Básica. Especialista em Filosofia e Direitos Humanos.