domingo, 10 de outubro de 2021

Conto: A última cerveja da noite

Quando ela o viu chegar, teve certeza que o conhecia de algum lugar. Estava um pouco mudado – o cabelo e a barba um pouco grande. Mas aquele olhar e aquele sorriso eram inconfundíveis. Pensou em ir até ele e cumprimenta-ló, mas não tinha tanta intimidade assim. O fez a distância com um gesto de cabeça e um sorriso. Ele também retribuiu o gesto, mas apenas por educação já que não sabia de quem se tratava.

Ele tentou buscar na memória quem seria aquela menina – de onde a conhecia. Mas não conseguiu se recordar. Apenas sabia que ela o conhecia pois se não não o teria cumprimentado daquela forma. Isso as vezes acontecia e ele se lamentava por não conseguir retribuir de forma afetuosa o carinho que recebia. Ir até ela e perguntar quem ela era, seria pior, pois poderia magoa-lá ao demostrar que ele não se recordava dela. Decidiu então deixar para lá e aproveitar a noite com os amigos.

A noite estava animada. Muita gente jovem curtindo, tomando cerveja e dançando ao som de músicas descartáveis. Não era o ambiente e nem o som que ele gostava, mas não tinha alternativa. Ela também preferia outra vibe, mas sabia que por ali era isso ou isso mesmo – eis a realidade de quem vive no interior e não tem muitas opções culturais para relachar nos finais de semana. Ela sabia bem disso, ele mais ainda, já que nascera e crescera no interior.

Só em tê-lo encontrado por ali – coisa muito rara – era um sinal que aquela seria uma noite especial. Melhor ainda seria ter a oportunidade de falar com ele, dizer o quanto o admirava. Ela que se encantou por ele quando o conheceu – um sujeito simples e muito atencioso – não podia imaginar que se tratava de um escritor. Só depois daquele encontro, navegando pela internet, foi que ela descobriu uns escritos dele e se tornou mais do que uma admiradora, uma fã.

- Sabe aquele cara ali... Dizia ela para as amigas – ele é incrível. Por que não vai até lá? Por que não fala com ele? Questionavam as amigas. – Não, não. Não tenho coragem. Dizia ela. – Não seja covarde. – Não é covardia. É respeito. Ele está aqui curtindo com os amigos, não vou importuna-ló. Até por que acho que ele nem se lembra de mim. – Refresca a memória dele então. 

Ele não comentou nada com os amigos mas vez e outra não deixava de olhar para ela dançando com as amigas. – De onde eu conheço essa menina? Ela não me é estranha. Pelo estilo ela não é daqui. E se nos conhecemos também não é desse lugar pois quase nunca venho aqui. Pensava ele consigo enquanto tomava mais uma cerveja.

E enquanto ele num canto e ela noutro não tomava uma atitude – a noite ia passando. O movimento começou a diminuir com as pessoas partindo para suas casas e logo tudo se encerraria. Foi então que surgiu um amigo em comum dos dois que decidiu junta-los – sem saber que eles se conheciam de outros verões, sem saber que era tudo que ela queria desde que o viu ali. Ele por sua vez, agora saberia de onde a conhecia, e se não a conhecia, iria conhece-lá. 

- Então. Essa é a minha amiga Ana. E esse é o meu brother...

- Não fala. Eu sei o nome dele. Nos conhecemos naquele rolê quando escalamos as serras gerais, mais um grupo de amigos. É John o seu nome, né?!

- Isso mesmo. Nossa é você!!! Eu não ti reconheci.

- Já eu assim que ti vi não tive dúvidas. Sou muito boa para guardar na memória a fisionomia das pessoas.

Ele não podia dizer a mesma coisa. O que era estranho para um escritor. Talvez ai esteja uma explicação para o fato de não haver muitas descrições dos seus personagens nas estórias que escrevia. Diante dele ela parecia mais frágil do que aquela menina que subiu as serras gerais. O penteado do cabelo estava diferente e estava usando óculos. Mas era ela, a voz e o sorriso eram inconfundíveis. 

Desde que escalaram as serras gerais nunca mais haviam se visto. Fazia o que? Um, dois anos? Ele já não se recordava, mas lembra que tiveram uma sintonia bacana naquela aventura. Ele quis saber o que ela andara fazendo nesse tempo todo. Ela falou da descoberta que fizera sobre ele ser um escritor. O elogiou pelas estórias que escrevia e confessou que essas estórias fizeram ela se apaixonar mais ainda pela aquela região. 

Ele recebeu timidamente os elogios e até com uma certa vergonha. Aliás era assim que sempre ficava quando alguém o elogiava pelo que escrevia. Ele não acreditava que as pessoas lessem o que ele escrevia e gostasse. Falou para ela que poderia ser melhor. Se fosse reescrever hoje faria diferente. Ela disse que o dele é muito melhor do que as outras coisas que existe sobre aquela região. Ai ele ficou mais tímido ainda do que era. 

Enquanto eles conversavam animadamente como velhos amigos que há muito tempo não se viam, uma torcida se formou próximo deles incentivando para que eles se beijassem. Afinal de contas foram unidos ali para isso e não para bater papo. – Estão querendo que a gente se beije. Comentou ele sorrindo. – Beija-ló? Por que não? Pensou ela. – Mas será que ele quer me beijar? Se quisesse teria feito. Mas beijar só por beijar, só por pressão dos amigos, não. Ele era muito especial para que um encontro terminasse num beijo um tanto forçado. Quem sabe num outro dia, num outro lugar, noutra vibe?! Onde o beijo não fosse apenas um beijo. Mas uma manifestação do amor.

Eles então se despediram prometendo manter contato. Enquanto os amigos, observavam decepcionados, o beijo não dado. Eles no entanto não se importavam. Guardaram o beijo para o momento adequado. E se esse momento nunca chegasse? – Paciência. É a vida camaradas. Dizia ele sorrindo e tomando a última cerveja da noite.

Pedro Ferreira Nunes – Educador, Poeta e Escritor Popular.

terça-feira, 5 de outubro de 2021

Sobre Projeto de vida – uma breve reflexão

Ligo aquela máquina

De lavagem cerebral

E aceito tudo que me impõem.

Por isso eu não sei o que quero

Por isso eu não sei o que quero...

Garotos Podres


Durante uma aula (online) de Projeto de Vida, com a turma do 6° Ano do Ensino Fundamental. Comecei a me questionar o por que falar em Projeto de Vida com crianças. Isso me incomodou mais ainda diante de algumas atividades que estão (ou deveriam estar) distante do universo infantil. 

Numa formação com o pessoal do MEC, eu já havia ficado com o pé atrás em relação ao Componente Curricular Projeto de Vida na Educação Básica. Me pareceu numa primeira análise, que é por aí que pretendem aprofundar a lógica mercadológica na educação – esse negócio de Projeto de Vida não tem outra intencionalidade se não preparar corpos dóceis para servir ao mercado (pensei comigo). Não por coincidência está lá nas 10 competências Gerais da BNCC ao lado de trabalho. 

De acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) a competência Trabalho e Projeto de Vida tem como objetivo desenvolver a habilidade de “valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais, apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade”. 

Digamos que concordemos com a necessidade de desenvolver essa habilidade. Mas com crianças? Analisando o que é proposto me parece um tanto sem sentido o Componente Curricular Projeto de Vida no Ensino Fundamental. E até mesmo no Ensino Médio. Podemos até falar em Projeto de Vida na Educação Básica, mas não vejo a necessidade de um Componente Curricular específico para isso.

No entanto, essa questão não está mais em discussão. O fato é que temos o Projeto de Vida como componente curricular no Ensino Fundamental e logo teremos no Ensino Médio. Diante disso o nosso desafio é trabalhar da melhor forma possível esse componente. E trabalhar da melhor forma possível com o Projeto de Vida é ir no sentido contrário do que propõem o mercado – o status cos.

Nesse sentido mais do que levar resposta aos estudantes, devemos levar questionamentos/perguntas. Paulo Freire disse numa entrevista certa vez que o problema da nossa educação é que ao invés de levarmos perguntas, levamos as respostas. E o pior, esquecemos da pergunta e ficamos reproduzindo respostas. Com isso castramos a curiosidade e a criatividade do estudante. Ora, se ele já tem a resposta, para que se esforçar na busca de algo?

Antes de falar em Projeto de Vida devemos questionar o que é a vida. Pois se não sei o que é a vida como posso falar em Projeto de Vida? Diante disso reafirmo o que disse numa formação sobre o Componente Curricular de Projeto de Vida ao ser questionado sobre o que levaria para os meus estudantes. Respondi: - Questionamentos e reflexões. 

Aqui abro um parêntese para dizer que na fala dos outros professores me veio uma preocupação do Projeto de Vida ser abordado numa perspectiva da autoajuda. Sobretudo quando se enfatiza em demasia às questões socioemocionais a partir de uma pseudopsicologia.

Voltando a questão. Creio, por tanto, que o nosso papel enquanto Professor de Projeto de Vida é levar questionamentos que possibilite reflexões ao estudante sobre a sua existência. Nesse sentido a Arte e a Filosofia são aliadas fundamentais possibilitando o aprofundamento dessas reflexões. A partir daí um projeto de vida será uma consequência natural e não imposição.

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. 


quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Karl Marx: Sobre o suicídio

A primeira publicação do ensaio de Marx sobre o suicídio, a partir de um estudo feito por Peuchet, data de 1846. Há um certo estranhamento acerca do fato de Marx ter se interessado por esse problema. Sobretudo diante da sua produção mais conhecida. No entanto, quem minimamente conhece a história da Filosofia sabe que desde a antiguidade há reflexões sobre o suicídio. Sendo um filósofo, nada mais natural que ele refletisse sobre esse problema. Além do fato de já percebermos aí uma forte crítica as relações sociais fruto da moral dominante – o que estará presente na produção posterior de Marx.

No Brasil a obra ganhou uma publicação da boitempo (2006), com o título de “Sobre o suicídio”. É um texto curto (E de fácil leitura), onde Marx apresenta e analisa um levantamento feito por Jacques Peuchet – quando este trabalhava como arquivista da Polícia de Paris – sobre os casos de suicídio que ali eram registrado no início da década de 1820. Dos casos relatados por Peuchet e destacados por Marx, estão o de jovens mulheres. Ao enfatizar esses casos Marx nos mostra a opressão que as mulheres estavam submetidas, independente de classe social. Aliás esse é o ponto de partida de Marx, ao criticar a visão filantrópica de que basta pão e educação para que as pessoas vivam bem, ele questiona por que então há tanto casos de suicídio de pessoas das classes altas?

Dito isso, destaquemos alguns pontos que Marx, a partir de Peuchet, fala sobre o suicídio.

1-    Em época de crise onde há um encarecimento do meio de vida cresce o número de casos;

2-    A miséria é um grande fator, no entanto o problema atinge todas as classes, pois são muitos os fatores que levam alguém se livrar de uma existência detestável;

3-    A felicidade e a infelicidade têm tantas maneiras de se manifestar, por tanto não devemos julgar como, e em que medida, as pessoas são afetadas por determinadas coisas;

4-    O que é contra a natureza não acontece, por tanto não tem muito sentido taxa-lo de uma ação antinatural. Trata-se de algo que está na natureza da nossa sociedade;

5-    Não é com insultos aos mortos que se enfrenta uma questão controversa como essa, por exemplo, acusando-o de falta de coragem, tentando fazer do suicídio um ato de covardia;

6-    As visões equivocadas sobre o suicídio leva a tomada de medidas infantis;

7-    Entre as causas que leva ao suicídio estão castigos e maus tratos secretos;

8-    O suicídio pode ser compreendido como uma expressão das relações sociais;

9-    Condições sociais, autoritarismo, moralismo – são elementos que nos ajudam a entender esse fenômeno, sobretudo por que uma pessoa não se mata pelo simples fato de querer morrer;

10-  Vê se que, na ausência de algo melhor, o suicídio é o último recurso contra os males da vida privada;

No levantamento feito por Peuchet os principais motivadores do suicídio eram: 1-doenças e depressões; 2- Paixão, brigas e desgostos; 3- Motivos desconhecidos. No entanto, tanto Marx como Peuchet chegaram a conclusão de que havia mais suicídios do que o que era registrado;

A partir dos relatos de Peuchet, percebe-se uma forte crítica a tendência de se minimizar ou negligenciar, nos outros, os sinais do mais extremo desespero. E isso certamente contribuí para que se busque no suicídio a saída desse estado. E quando isso acontece, ao invés de procurar uma explicação efetiva, busca-se culpados.

Na edição da Boitempo, vem acompanhado um texto do Michael Löwy intitulado de “Um Marx insólito”. É um texto interessante que nos ajuda a compreender a importância da obra “Sobre o suicídio”. No entanto eu indicaria que a leitura do mesmo fosse feita posteriormente a leitura do escrito do Marx.

Löwy destaca que para Marx, o suicídio é significativo como sintoma de uma sociedade doente, que necessita de uma transformação radical. Ele ressalta que a natureza desumana da sociedade capitalista fere os indivíduos das mais diversas origens sociais. Diante disso, Löwy afirma que a obra é uma importante contribuição para uma compreensão mais rica das injustiças sociais da moderna sociedade burguesa, nessa obra em específico, contra as mulheres.

Para se ter uma ideia da relevância desse ensaio escrito por Marx a partir dos relatos do Peuchet. Analisemos alguns dados da Organização Mundial da Saúde e da Organização Panamericana da Saúde sobre o suicídio:

1- Cerca de 800 mil pessoas morrem por suicídio todos os anos;

2- Para cada suicídio, há muito mais pessoas que tentam o suicídio a cada ano. A tentativa prévia é o fator de risco mais importante para o suicídio na população em geral;

3- O suicídio é a segunda principal causa de morte entre jovens com idade entre 15 e 29 anos;

4- 79% dos suicídios no mundo ocorrem em países de baixa e média renda;

Enfim, diante desses dados concluímos. Não é com discurso moralista ou de autoajuda que conseguiremos enfrentar esse problema. E esse livro muito contribui para essa reflexão.

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos.

sábado, 25 de setembro de 2021

Poema: Eu gosto de Mato

Eu gosto de mato
não gosto de cidade grande.
Da vida urbana
da correria dessas grandes metrópoles.

Não, não gosto da vida urbana:
Ônibus lotados,
Engarrafamento,
Violência.

Não, não gosto da vida urbana:
Atenção, pare, siga.

Viver preso atrás de muros e grades.
Com medo da violência 
que aflora em cada esquina.

Não, não gosto de cidade grande.
Vou voltar para o interior
para vida pacata do campo.
Sou um camponês,
um bicho grilo.
Gosto de mato.

Por Pedro Ferreira Nunes - Poeta, Escritor e Educador Popular. 

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Dialogicidade ou celebrando Paulo Freire como deve ser celebrado

Em 2021, nós que militamos por uma educação emancipadora, celebramos o Centenário do Mestre Paulo Freire. Essa celebração ganha força sobretudo após a fracassada tentativa, por parte de setores conservadores e liberais da nossa sociedade, de satanizá-lo. Agora, Paulo Freire e sua pedagogia ressurge com mais força diante da inercia daqueles que prometiam, mas nada de novo apresentaram.

Ora, no contexto de retrocessos que vivemos, sobretudo no campo educacional, a Pedagogia Freireana se coloca como uma trincheira de resistência contra uma educação que desumaniza. Mas o seu legado não pode se restringir a frases soltas em materiais pedagógicos ou nos murais das escolas. A Pedagogia Freireana precisa ser compreendida e colocada em prática pelos educadores que assumem na prática docente uma concepção libertadora da Educação. Sobretudo no âmbito da educação básica.

Estamos passando por mudanças significativas no campo educacional com o avanço da implementação da  Base Nacional Comum Curricular na Educação Básica. Isso justamente num momento pandêmico onde outras mudanças tiveram que ser aceleradas. Sobretudo quanto ao uso da tecnologia. É nesse contexto, que a perspectiva educacional Freireana precisa está mais presente do que nunca na Escola.

Paulo Freire sempre defendeu a necessidade dos educadores se capacitarem de forma contínua para estarem mais preparados diante dos desafios que surgem. Isso sem abandonar “a coerência com a nossa opção política”. Por essa opção corre-se risco. Sobretudo por que “educação libertadora ou é aventura permanente ou não é criadora.” Em suma, para Freire assumir o exercício docente como uma busca permanente de criação e reinvenção exige da nossa parte a coragem de assumir riscos.

É nessa perspectiva que nasceu o Projeto Dialogicidade – que tem por objetivo aprofundar os conteúdos trabalhados nos Componentes Curriculares da Área de Linguagens e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas no Ensino Médio e na Educação de Jovens e Adultos (EJA), a partir da seguinte dinâmica: Ao receber as atividades dos estudantes, buscamos levantar falas significativas. E a partir das falas significativas temas geradores que serão abordados no formato de Podcast. E então compartilhado quinzenalmente no Google Sala de Aula.

Acreditamos que isso contribui para que estabeleçamos, minimamente, um diálogo entre educadores e educandos. Mesmo no formato de aulas não-presenciais.

O diálogo é um elemento central na Concepção Pedagógica Freireana – que parte do pressuposto de que ninguém está só no mundo.  E se não estamos sós no mundo o respeito deve prevalecer – sobretudo o respeito, ao direito do outro, a palavra. É esse direito a palavra que queremos afirmar ao mostrar ao educando que ele está sendo ouvido no momento que utilizamos a sua fala para planejar os nossos episódios e aprofundar o conhecimento sobre determinado tema.

Com isso, através do Projeto Dialogicidade, e do nosso compromisso com uma educação libertadora, celebramos o centenário do Paulo Freire. Como deve ser celebrado, na nossa visão, na prática docente. Caso queiram conferir essa aventura acessem o link (DIALOGICIDADE) e confiram os episódios produzidos até agora.

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos.  Atualmente é Professor da Educação Básica no CENSP-Lajeado.

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

O diário de Anne Frank: Mais leitura e escrita, menos antidepressivos

“Tenho vontade de escrever, e tenho uma necessidade ainda maior de tirar todo tipo de coisas de dentro de meu peito”.

Anne Frank


Maria Lúcia chegou em casa de uma consulta médica com uma receita que lhe indicava o uso de um antidepressivo. Achei um tanto exagerado por parte do médico. Pois na nossa convivência não tenho notado mais do que ansiedade. 

É importante destacar que nós que já éramos ansiosos nos tornamos mais ansiosos ainda diante de uma pandemia que nos mostrou a fragilidade humana. Essa ansiedade tem afetado como nunca a nossa saúde mental. Sobretudo pelo fato de não termos sido educados para controlar nossas emoções. Pelo contrário, desde a infância somos expostos a coisas que nos tornam frágeis emocionalmente. Com isso nos tornamos presas fáceis para a indústria dos antidepressivos.

Não quero aqui fazer pré-julgamento de ninguém. A questão é que agindo assim a tendência é transformar um problema num problemão. Algo que poderia se resolver com uma mudança de hábitos acaba sendo encarado como um problema mais grave. 

A ansiedade é sim um problema, que se não enfrentada pode inclusive evoluir para uma depressão – essa sim é uma patologia que como diz o Filósofo Vladimir Safatle, faz o sujeito acreditar que não tem mais força, não tem mais potência, não consegue mais fazer. Quando se chega nesse ponto é difícil sair sem um tratamento com profissionais da área da Saúde, inclusive com a necessidade do uso de medicação. Já a ansiedade pode ser controlada com a mudança de hábitos. Por exemplo, leitura e escrita. Nessa linha podemos pegar o exemplo de Anne Frank. 

Anne – uma adolescente judia – teve que se refugiar com sua família (e outros conhecidos) num esconderijo, fugindo do regime Nazista. Durante dois anos tiveram que conviver entre o medo e a esperança provocado pelas incertezas dos acontecimentos da 2° Guerra Mundial. Se isso já não bastasse, temos os conflitos provocados pela convivência no isolamento forçado. Isolamento mesmo – pois qualquer vacilo significava cair nas mãos Nazistas.

Imagine, o quão angustiante e desesperador não era para aquelas 8 pessoas: Anne, seu Pai (Otto), sua Mãe (Edith) e sua irmã (Margot). Hermann, Petronella e Peter (Família Van Daan). E Fritz Pfeffer. Imagine a ansiedade diante de um quadro de incertezas – o único contato deles com o mundo exterior era o rádio e alguns amigos que os auxiliavam nas suas necessidades como alimentação.

Podemos ter uma ideia de como eles sobreviveram nesse esconderijo por um pouco mais de 2 anos (até serem descobertos, presos e enviados para campos de concentração Nazistas) através da leitura do Diário de Anne Frank – um relato de uma adolescente que se tornou um clássico da literatura mundial por nos mostrar o espírito daqueles tempos.

Lendo o diário de Anne percebi que ele pode nos ensinar mais coisas do que a necessidade de resistirmos contra qualquer regime político que fira a dignidade humana. Anne através do seu relato também nos mostra o quanto a leitura e a escrita são importantes não só para aquisição de conhecimento, mas também como um exercício para manter nossa sanidade.

Em um dos trechos do seu diário, Anne diz o seguinte: “tenho necessidade de escrever, e tenho uma necessidade ainda maior de tirar todo tipo de coisas de dentro de meu peito. “O papel tem mais paciência do que as pessoas”. Pensei nesse ditado nu  daqueles dias em que me sentia meio deprimida...”.

A leitura e a escrita fizeram parte da vida de Anne no esconderijo, tornando aquele isolamento forçado menos tragável possível. Manter o diário, onde ela registrava suas alegrias e tristezas, amores e ódios, esperanças e medos – foi um exercício para manter a sanidade. Já a leitura era algo comum a todos os habitantes do esconderijo. Inclusive eles trocavam entre si impressões sobre os livros lidos.

A partir do exemplo de Anne Frank defendemos a literatura como um exercício importante para controlarmos a ansiedade e evitarmos um quadro depressivo mais grave. Somando a isso uma caminhada, corrida ou pedalada, ajuda ainda mais. Por isso encerramos dizendo – mais leitura e escrita, menos antidepressivos. 

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. 

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Por que não fuzil?

Logo verás que nossas balas, são para os nossos generais...”

A Internacional


Se a moda é polemizar, eu também vou polemizar. E a polêmica da vez é: feijão ou fuzil? É meu camarada, para você vê o nível que chegamos no debate político. E adivinha quem iniciou a polêmica? O pior nem é isso, o pior é termos dado mídia fortalecendo uma polêmica vazia, e assim, como sempre, fazemos exatamente o que ele quer que façamos. Mas se é para polemizar vamos lá então, por que não fuzil?

Imagine se os povos indígenas, os quilombolas, os sem terra, os sem teto com os seus fuzis. A classe dominante pensaria duas vezes antes de cometer qualquer agressão contra os seus territórios. Imagine cada trabalhador com o seu fuzil – queria ver as greves serem criminalizadas, as manifestações reprimidas e os direitos usurpados. Imagina cada cidadão com um fuzil, quem está no poder não teria uma noite de sono tranquila. 

A policia seria desnecessária. Ora para que policia se cada um faz a sua própria segurança? Todo o gasto desnecessário que temos com a segurança pública, já que as polícias não conseguem fazer o seu dever poderia ser utilizado para outras coisas. Por que não propomos essa discussão?!

Não desprezemos o fuzil, ele sempre foi um aliado importante na luta contra a opressão. Que o diga os comunados, os bolcheviques, os rebeldes cubanos entre outros. É só não nos esquecermos para quem devemos direcionar nossas balas.

Lênin (2010) no seu célebre “O Estado e a Revolução” aborda essa questão do armamento da população a partir do pensamento de Engels. Ele salienta que pelo fato da sociedade ser dividida em classes antagônicas é previsível que esse armamento desembocaria numa luta armada. Daí que se busca pelo monopólio da força. “A classe dominante se empenha em reconstituir, a seu serviço, corpos de homens armados” e a classe oprimida, por sua vez, “se empenha em criar uma nova organização do mesmo gênero, para pô-la ao serviço, não mais dos exploradores, mas dos explorados” (LÊNIN, 2010, p. 30).

Bolsonaro e seus aliados sabem muito bem disso. Quando defendem o armamento da população na verdade estão defendendo o armamento da classe dominante – que já  tem sobre o seu poder as forças armadas oficiais. Desse modo o objetivo não é quebrar o monopólio da força do Estado, mas fortalece-lo mais ainda. Pois eles sabem que se toda a população se armar a rebelião contra o estado de coisas atual será feroz.

Diante disso, ganha mais força o questionamento: Por que não fuzil? Ao invés de nos opormos ao desarmamento, façamos o contrário, defendamos o armamento de toda a população. Defendamos o direito dos trabalhadores se armarem – de cada sindicato ter uma sessão militar. Dos indígenas se armarem, dos quilombolas, dos sem terra, dos sem teto. 

Há uma certa ingenuidade nos setores da esquerda achando que tudo se resolve com uma vitória eleitoral. Esqueceram-se do que disse Lênin, sobre o fato do voto ser um instrumento de dominação da classe dominante. Esqueceram-se também, como diz  Paulo Arantes, que política é luta – e que quando necessário deve-se inclusive pegar em armas como se fez durante a ditadura militar. Aliás, há um discurso hegemônico no campo da esquerda que a resistência armada contra a Ditadura Civil-Militar foi um equívoco – o que certamente contribuí para esse rechaço ao fuzil. Diante disso é importante lembrar das palavras do Vladimir Safatle:

“A esquerda precisa entender de uma vez por todas a natureza do embate, ouvir aqueles mais dispostos ao confronto, esses que não tiveram medo de ir para a rua hoje, e assumir uma lógica de polarização. Isso implica que ela precisa mobilizar a partir da sua própria noção de ruptura, em alto e bom som. Uma ruptura contra outra. Não há mais nada a salvar ou a preservar nesse país. Ele acabou. Um país cuja data de sua independência é comemorada dessa forma simplesmente acabou. Se for para lutar, que não seja para salvá-lo, mas para criar outro.”

Estamos a altura dessa tarefa histórica? Ou vamos continuar achando que tudo se resolverá na próxima eleição? Se a nossa opção for criar outro país e não continuar tentando salvar esse, o fuzil será um instrumento importante. 

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos.