sexta-feira, 19 de junho de 2020

3° FLIP – Feira Literária de Porto Nacional 100% digital

Sim, esse ano teremos a terceira edição da Feira Literária de Porto Nacional. Será 100% digital devido o momento que estamos passando em decorrência da pandemia de COVID-19. Mas o fato de ser digital não tira a sua importância ao divulgar, promover e incentivar a produção literária em geral, e em especial a que é produzida no Tocantins . 
Essa edição 100% digital da FLIP – Portuense abre novas possibilidades – certamente por meio virtual um maior número de pessoas terão acesso às palestras, apresentações, discussões e lançamentos de obras. E essa possibilidade de um maior alcance é importante para todos os envolvidos, mas sobretudo para o fortalecimento da cultura literária no e do Tocantins. 
A FLIP é atualmente o principal evento literário do Tocantins (quem sabe da região norte), sobretudo depois do engavetamento do Salão do livro pelo governo estadual – que teve a sua última edição realizada ainda em 2015. E realiza-lá, ainda que de forma virtual, é importante para que esse evento possa se consolidar e criar raízes no calendário regional. Á exemplo da Semana da Cultura de Porto Nacional que caminha para sua 39° edição. Esse processo de consolidação e enraizamento depende do poder público mas também de nós amantes da literatura – seja como leitor ou escritor. Como? Fortalecendo esse evento – divulgando e participando. 
A terceira edição da FLIP – Portuense acontecerá  de 09 á 13 de Julho de 2020 – dentro da Semana da Cultura de Porto Nacional – que como já dissemos estará realizando a sua 39° edição. Por tanto além das novidades do mundo literário os internautas poderão apreciar outras expressões artísticas que desfilarão ao longo da Semana. 
Porto Nacional é considerada a capital cultural do Tocantins – portanto quem quiser conhecer um pouco mais da nossa cultura – terá essa oportunidade sem precisar sair de casa.
Voltando a falar sobre a FLIP, como dissemos no início, uma edição virtual trás novas possibilidades tanto para quem organiza o evento, como também para autores e público leitor. Por exemplo, o primeiro ponto que destacaria nesse sentido, seria o potencial de aumento do público. Pois por meio virtual, qualquer pessoa (que tenha acesso a internet), em qualquer canto do Brasil, pode acessar e acompanhar o evento. E isso significa uma maior visibilidade aos autores e suas obras que estarão participando da FLIP.
Um segundo ponto que destacaria seria o incentivo para que os autores se apropriem da tecnologia para potencializar a sua produção literária. Pois é inegável que as redes sociais e outras mídias, se bem utilizadas, podem se tornar uma importante ferramenta na divulgação e distribuição da produção literária. Além de possibilitar um diálogo permanente entre autores e leitores. 
Há também a vantagem do autor não precisar ficar esperando os veículos tradicionais de comunicação lhe dá algum espaço para divulgar seu trabalho. Até por que, á depender disso a maioria dos autores independentes teriam grande dificuldade de chegar ao leitor.
Um terceiro ponto que destacaria seria a disponibilização no ambiente virtual de mais conteúdo relativo a literatura tocantinense. Quem tiver a curiosidade de pesquisar esse tema na rede verá que há pouca informação sobre autores tocantinenses e suas obras. Por tanto,  pensando no público leitor, especialmente das escolas onde teoricamente deveria se estudar a literatura tocantinense, os conteúdos que forem produzidos (que espero, continuem no ar depois da feira) poderão ser utilizado nesses processos de formação. 
Apesar dessas novas possibilidades que a edição virtual da FLIP – Portuense trás. Nada substitue o prazer de uma feira literária presencial. De modo que ficamos na torcida para que a quarta edição em 2021 possa acontecer presencialmente – o que não significa que se tenha que abandonar o formato virtual. Pelo contrário, pode-se muito bem ter um evento presencial com a cobertura virtual. Mas isso é coisa para o ano que vem. Esse ano vamos prestigiar a FLIP – Portuense 100% digital.
Por Pedro Ferreira Nunes – Poeta, Escritor e Educador Popular.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Emanuela di Gropello e a crise silenciosa na educação da América Latina

A educação é um dos setores que mais tem sido afetado devido o distanciamento social e isolamento imposto pela pandemia de COVID-19. Com as escolas fechadas há vários meses milhares de crianças pelo mundo estão sem aula – as medidas tomadas até o momento pelos diferentes governos só aprofunda ainda mais a desigualdade no processo educacional, pois a maioria das famílias de alunos de escolas públicas não tem acesso as tecnologias necessárias para as aulas que estão sendo ofertada na modalidade à distância – mesmo os que tem acesso a essas tecnologias carecem de acompanhemento e orientação para que possam melhor compreender os conteúdos trabalhados. Nesse contexto, o que fazer?

Esse é o problema analisado por Emanuele di Gropello – Doutora em Economia pela Universidade Oxford e líder em práticas educacionais na América Latina e no Caribe pelo Banco Mundial.  Para di Gropello vivemos uma “crise silenciosa” na América Latina no âmbito educacional – uma “crise silenciosa” – que “será cada vez menos e menos silenciosa” até tornar-se estridente. Isso por que a tendência é que aja cada vez mais perdas no nível de aprendizagem e aumento da desigualdade no processo de aprendizagem. Pois além da dificuldade do sistema remoto de ensino soma-se também os impactos econômicos que certamente as escolas sofreram devido a concentração de recursos para combater os estragos com a pandemia do novo coronavírus.

Para di Gropello ocorreram perdas educativas em todo o planeta. Porém há dois elementos que tornam a situação na América Latina ainda mais grave. Primeiro, pelo fato de que por aqui, a crise que já vinha ocorrendo devido o alto nível de pobreza no processo de aprendizagem. E em segundo lugar o nível de conectividade que está a baixo da média em comparação com outras localidades.

Outro fator para o qual nossa autora chama atenção é a questão do abandono escolar que tende a aumentar nesse contexto. Primeiro pelo fato de que no contexto atual a relação entre educador e educando se torna mais débil. E assim se torna mais fácil perder alunos. Segundo por que com a queda no nível de aprendizagem muitos podem se sentir desestimulados e assim preferirem desistir. E em terceiro a crise econômica pode obrigar os pais a tirarem os filhos da escola para poderem trabalhar e ajudar no sustento do lar.

Diante disso o que fazer? di Gropello aponta um projeto com três fases sendo que a primeira já está sendo executada – que é ajudar os governos a montar sistemas efetivos de educação á distância. A segunda fase será (a partir da abertura das escolas) recuperar e manejar a continuidade da aprendizagem.  A partir dai “será importante desenhar e implementar protocolos para reabertura segura das escolas, assim como mitigar as perdas de aprendizagem com programas de recuperação educativa e outras medidas acadêmicas e pedagógicas”. E a terceira será a fase de melhoramento da educação o que passa por reformas que simplifique os currículos escolares e um melhor aproveitamento dos professores.

Por fim, di Gropello conclui afirmando que a América Latina deve aproveitar estas oportunidades e construir sistemas educativos melhores do que temos. 

Certamente precisamos construir sistemas educativos melhores do que temos. E crises como a que estamos vivendo – onde se explicitam as contradições, desigualdades e limites do sistema de ensino formal – é um ótimo momento para tanto. Inclusive para que não nos iludamos com projetos impostos de cima para baixo como esse que propõem o Banco Mundial através do discurso de Emanuela di Gropello – sem ouvir os principais atores do processo educacional que é os professores e estudantes.

A análise de di Gropello deixa de fora as raízes dos problemas educacionais na América Latina. Ao não ir as raízes o que propõem não é a superação das desigualdades no âmbito educacional (que está intrinsicamente ligada a desigualdade social imposta pelo modo de produção dominante) mas apenas o aprofundamento da lógica mercadológica na educação. 

Diante disso é importante relembrarmos o que disse Mészáros  (2008) sobre a necessidade de romper com a lógica do capital se quisermos contemplar a criação de uma alternativa educacional significativamente diferente – isso é fundamental para que não caiamos em engodos como o de di Gropello e do Banco Mundial. 

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Tocantins. 

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Esquerda e esquerdas – uma diferenciação necessária!

“A história das sociedades desigualitárias vem acumulando um rico material sobre os malefícios e sofrimentos que a extrema desigualdade social tem acarretado para a humanidade. Desde o neolítico têm surgido espíritos críticos que propõem alternativas para esse caminho malsão. Esses espíritos críticos é que constituem hoje o que chamamos de esquerda. São especialistas na luta contra as injustiças e na arte da sobrevivência.”
Leandro Konder

Vivemos num contexto de polarização política marcada por um discurso reducionista em torno de conceitos importantes que nos ajudam na compreensão da dinâmica social. E esse reducionismo acaba contribuindo para uma visão distorcida da realidade. Óbvio, isso não é feito sem intenção, pelo contrário. A ideia é fazer com que os indivíduos não compreendam mesmo a dinâmica social pois assim elas não terão como modifica-lá.

Um dos conceitos que sofre esse reducionismo é o de esquerda (sejamos honesto, o de direita também) – utilizado geralmente no campo político para identificar grupos que se opõem as políticas da classe dominante. Até ai tudo bem. O problema é quando se reduz a um grupo o conceito de esquerda. E é o que geralmente tem acontecido por parte de diferentes analistas políticos tanto no debate público (sobretudo através da imprensa) como no meio académico. 

Por exemplo um determinado grupo de esquerda (partido ou movimento social) se posiciona acerca de uma questão. Logo se tenta passar para opinião pública que esse posicionamento é de um todo e não de uma parte. Melhor exemplificando, o PSOL é contra o “pacote anticrime” do governo Bolsonaro, logo se tenta passar que é a esquerda que é contra o referido projeto. Outro exemplo, o PCB apoia o regime político norte-coreano, logo o discurso é a esquerda apoia o referido regime. O PT defende que houve um golpe com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, logo o discurso é que a esquerda defende que tratou-se de um golpe o impeachment de Dilma Rousseff. 

Há também afirmações bem genéricas acerca da relação da esquerda com a religião, cultura, segurança pública, direitos humanos entre outros. Seguindo a mesma lógica de tentar reduzir as partes no todo, no entanto partindo de uma ideia abstrata. Como consequência, elas não correspondem aos fatos. E não correspondem aos fatos por que é uma espécie de falácia – uma generalização absoluta – que consiste na aplicação de uma regra geral a uma situação em particular. De acordo com Matthew – “essa falácia é muito comum entre pessoas que tentam decidir questões legais e morais aplicando regras Gerais mecanicamente”. Mais ou menos assim: “- A esquerda é contra evangélicos, você é de esquerda, logo é contra os evangélicos”. Ou, “- Direitos humanos é direito de bandido, a esquerda defende direitos humanos, logo a esquerda defende direito de bandidos”. Ou ainda, “- o PT é corrupto como mostrou a operação lava jato, e sendo um governo de esquerda, mostra que todo governo de esquerda é corrupto”.

Ora, grupos como PSOL, PT,  PCB,  PC do B, PSTU, PCO, MST, MTST, INTERSINDICAL, CUT, CSP-CONLUTAS entre muitos outros, podem até ser colocados no campo da esquerda. Mas daí dizer que cada grupo desse é “a esquerda”, para não dizer desonesto, é no mínimo uma falácia. Quando um desses grupos se expressam eles não estão falando por todo o conjunto do pensamento de esquerda, mas apenas por um determinado grupo – estão expressando a sua visão de esquerda. Daí ao invés de falar em esquerda (no singular) seria mais honesto intelectualmente falar em esquerdas – dado as diferentes perspectivas acerca do que é ser de esquerda. Por exemplo, considera-se que o PT e o PSTU estão no campo da esquerda. Mas na prática a concepção de esquerda desses dois grupos chega a ser quase antagônica. De modo que o PSTU não se sente representado pelo PT e o PT muito menos pelo PSTU. Da mesma forma pode se falar de um Trotskista e um Stalinista.

A esquerda é uma espécie de guarda-chuva onde se abrigam diferentes tendências (algumas inclusive que não dialogam entre si), por tanto quando se for falar da esquerda é preciso deixar claro de qual esquerda se está falando (qual tendência) – a comunista, a socialista, a anarquista, a socialdemocrata. Ou qual grupo de esquerda se está referindo – PSOL, PT, PCB,  PC do B, PSTU, MST, MTST, CUT, INTERSINDICAL e por ai em diante. Mas infelizmente no debate político contemporâneo brasileiro a esquerda virou sinônimo de comunista que por sua vez virou sinônimo de petista. 

É camaradas, vivemos um aprofundamento do que o filósofo Leandro Konder apontou ainda em 2008 – no segundo mandato do presidente Lula – a expansão da resignação, enfraquecimento do espírito questionador, empobrecimento das discussões e assimilação do conformismo pelos cérebros. E aquém interessa esse estado de coisas se não ao status quos?!

Parece uma questão óbvio, mas as vezes o que nos é óbvio não é tão óbvio assim para os demais. E como não nos custa responder, respondamos então: 

Não, senhores. Nem toda esquerda é comunista e nem todo comunista é petista. Em primeiro lugar, você não encontrará uma única definição do que é a esquerda – essa definição dependerá da perspectiva da qual se está falando. Se quer ter uma idéia da diversidade de concepção sobre a esquerda recomendo a leitura do livro “o que é ser de esquerda hoje?” (Editora Contraponto) uma coletânea de textos de diferentes pensadores de diferentes organizações políticas e da academia. Mas aqui temos que optar por uma definição do que é a esquerda. Sendo assim fiquemos com a do filósofo Leandro Konder. 

Para Konder (2008) à esquerda se caracteriza por uma visão crítica e pela proposição de alternativas as sociedades desigualitárias. Essa concepção é bem abrangente, não só em relação ao período histórico como também a correntes de pensamento, organizações e indivíduos. E partindo dessa concepção abrangente de esquerda podemos afirmar que ela precede o comunismo – este por sua vez se constituiu – como uma corrente de esquerda que ganhou força sobretudo a partir das contribuições de Marx e Engels (que é bom lembrar não criaram o movimento comunista, apenas deram uma nova perspectiva para este). 

Os comunistas não são a única força de esquerda e Marx e Engels deixam isso claro no “Manifesto do Partido Comunista”. Afinal como afirmam: “A história de todas as sociedades até agora tem sido a história das lutas de classe” (2008, p. 08). Ora, antes do movimento comunista já havia luta de classes, já havia pensamento critico e propostas alternativas ao modo de produção dominante, em suma, já havia esquerda. De modo que podemos dizer que os comunistas não são a esquerda, mas uma das suas expressões (talvez a sua expressão mais consequente). Que se constituiu, segundo Marx e Engels, na luta pela supressão da propriedade privada (a propriedade burguesa).

Nessas lutas foram surgindo diversas organizações mundo afora com o objetivo de constituir o proletariado em classe, derrubar o domínio da burguesia, e a partir daí o proletariado conquistar o poder político (2008, p. 30). Entre essas organizações surgiram os partidos políticos tal como conhecemos hoje. E já no “Manifesto do Partido Comunista” percebemos que os partidos não representam todo o movimento mas uma fração apenas.

Chegamos então ao Partido dos Trabalhadores  (PT) um partido popular surgido na década de 1980 – no movimento de redemocratização política do país com o fim do regime Militar. O PT surge como uma alternativa de massas no campo da esquerda – se contrapondo ao modelo de organização hegemônico nesse campo a partir do triunfo da revolução Bolchevique na Rússia em 1917 representado sobretudo pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB). Enquanto o PCB fundado na tradição marxista-leninista tinha uma visão mais revolucionária – inclusive se necessário através da luta armada. O PT se fundamentou num projeto de integração e melhoria das condições de vida das classes populares – não se fala em revolução mas em reformas. Essa perspectiva se torna hegemônica na esquerda brasileira, mas o fato de se tornar hegemônica não significa que não exista outras.

Por isso não dá para aceitar o discurso reducionista de que o PT é a esquerda, que a esquerda é o comunismo, e o comunismo é o PT. Esses que alimentam esse discurso querem tudo, menos que os indivíduos se libertem da condição de alienação que estão. Cuidado com esses pseudointelectuais que com a desculpa de ti mostrarem o caminho mais curto ti colocam num beco sem saída ou melhor, com uma única saida – a direita.

Minha camarada e meu camarada, partindo de premissas falsas não é possível chegar a conclusões verdadeiras. Por tanto quando falarem que a esquerda é isso ou a esquerda é aquilo. Ou ainda que a esquerda fez isso ou que a esquerda fez aquilo. Pergunte de qual esquerda se está falando. Pois como procuramos mostrar aqui não há uma esquerda mas sim esquerdas. Podemos até falar em uma esquerda do ponto de vista conceitual, mas no terreno real da luta política o que vemos são suas expressões – e essas expressões são diversas tanto do ponto de vista de perspectivas (anarquismo, comunismo, socialismo, socialdemocracia), como do ponto de vista organizacional (partidos políticos, sindicatos, associações). São essas expressões que vemos atuando no dia a dia.

E aqui chamamos atenção para o seguinte ponto. Com o desenvolvimento histórico essas expressões da esquerda podem se modificarem e até chegarem ao fim. Mas o ideal de esquerda não. Por isso não podemos engolir o discurso do fim da esquerda – partidos podem acabar, movimentos podem se enfraquecer, correntes de pensamento podem ser superadas – a esquerda viverá enquanto existir alguém em algum canto cultivando a crítica e propondo construir um modelo alternativo de sociedade.

Parece que desviamos um pouco do nosso objetivo inicial – falar sobre o reducionismo em torno do conceito de esquerda na atualidade. Mas justificaria esse desvio com o argumento de que esse reducionismo busca destruir as forças de esquerda. Daí a importância de refletirmos também sobre essa questão.

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Tocantins. 

quarta-feira, 3 de junho de 2020

“O Rio não tá pra peixe” – intervenção artística na Ponte dos Imigrantes Nordestinos

As milhares de pessoas que trafegam pela Ponte dos Imigrantes Nordestinos (TO-010) com certeza notaram algo diferente na paisagem. O que seria? Quem colocou aqueles objetos ali? São perguntas que deve ter passado na cabeça de muita gente. Desses, poucos talvez, pensaram se tratar de uma intervenção artística. 

Se um dos objetivos da arte é provocar e chamar atenção para determinados problemas. A intervenção artística é uma das suas vertentes que leva esse objetivo a cabo. “A intervenção lança no espaço público questões que provocam discussões em toda a população. De uma maneira ou de outra, ela faz com que as pessoas parem sua rotina por alguns minutos, seja para questionar, criticar ou simplesmente contemplar a arte” (IMBROISI, 2016).

Ainda de acordo com essa autora (2016) a finalidade da intervenção artística “é provocar o público para questões políticas, sociais, ideológicas e estéticas”. Para tanto ela não pode se restrigir ao circuito oficial de arte – galerias e museus. Deve sim ocupar os espaços públicos onde estará ao alcance de um maior número de pessoas. 

No Tocantins não é muito comum intervenções artisticas em espaços públicos – ainda mais no interior. Diante disso é louvável a iniciativa do artista plástico Rogério Caldeira com sua intervenção intitulada de “O Rio não tá pra peixe”, na Ponte dos Imigrantes Nordestinos – que liga as cidades de Lajeado e Miracema. Rogério Caldeira tem no currículo vários trabalhos expostos em espaços públicos de Palmas. Mas no interior essa é uma das suas primeiras incursões. 

Seguindo a linha dos seus trabalhos anteriores, a matéria prima utilizada nesse trabalho é sucata. No caso, quadros de bicicletas – que a sua sensibilidade artística resignifica transformando em peixes. Peixes? Por que não. 

Caldeira segue a linha de artistas onde o mais importante não é o material mas a ideia que compõe o trabalho. 

Nessa linha a intervenção artística “O Rio não tá pra peixe” pode ser compreendida como uma crítica a projetos de Usinas Hidrelétricas  (UHE’s) – que desviam o curso natural do rio prejudicando a sua biodiversidade. Também uma crítica a pesca predatória e ao turismo irresponsável – que contribuem para uma destruição ainda maior do rio e suas espécies. 

Ao chamar atenção para esse problema o artista busca sensibilizar, através da arte, os milhares de usuários que passam todos os dias na Ponte dos Imigrantes Nordestinos – para necessidade de protegermos o rio Tocantins e a sua biodiversidade. E essa proteção passa pela luta contra projetos de UHE’s, a pesca predatória e o turismo irresponsável. 

De quebra ele também chama atenção para importância da arte na luta contra as expressões da questão social decorrente das agressões ao meio ambiente. Ou então, simplesmente como um meio de nos arrancar do comodismo da vida cotidiana apresentando novas possibilidades de olhares sobre a realidade.

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Tocantins. 

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Notas sobre a origem da Revolução cientifica a partir da leitura do filósofo Danilo Marcondes

“O místico Pascal,
contempla o céu estrelado
numa vã espera de vozes.
O céu calou-se
estamos só no infinito
deus nos abandonou...”
Paulo Leminski

Questões introdutórias 

Estamos no século XXI, as ciências chegaram num grau de desenvolvimento inimaginável para os pioneiros dessa área, sobretudo aqueles que (do século XV ao XVIII) assentaram as bases do que compreendemos hoje como ciências. Esse desenvolvimento e os resultados que daí advém colocam a ciência como um conhecimento quase que inquestionável. É como se dissessem: - tudo que tem a chancela da ciência pode confiar.

Isso leva a situações como a de profissionais da área aparecendo em propagandas recomendando o consumo de um determinado produto. Ou de um religioso com uniforme médico na televisão prometendo um tratamento espiritual contra um vício. Ainda que não se trate de um especialista da área, só o fato de estar vestido como um, passa uma credibilidade para quem está assistindo.

Por outro lado há quem não deixa de questionar e perseguir a ciência. E inclusive, nessa segunda década do século XXI há um movimento crescente nesse sentido – utilizando para tanto argumentos dos tempos medievos. São os chamados negacionistas que nunca deixaram de existir, mas que agora ocupam importantes cargos na esfera política mundial.

Apesar desses, a ciência existe, resiste e não deixará de existir. Nem sempre para o bem. Nem sempre a serviço da coletividade. É importante não perder isso de vista para não darmos poderes absolutos aos cientistas. A ciência deve servir a sociedade e não o contrário. Nesse momento em que a sociedade atravessa uma crise com a pandemia de COVID-19 e a grande maioria das pessoas voltam os olhos para ciência na esperança de uma solução para o problema. Não podemos deixar passar a oportunidade de discutir essa questão. 

Mas não é o meu objetivo e nem o que farei aqui. A ideia desse texto, é entender como surgiu a ciência moderna a partir do filósofo Danilo Marcondes, no seu livro “Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a wittgenstein”. Acredito que isso é importante para compreendermos o desenvolvimento da ciência até nossos dias e a partir daí refletir sobre para onde caminhamos ou podemos caminhar em relação ao conhecimento científico. 

A revolução científica 

O trabalho de Nicolau Copérnico sobre ás orbes celestes, de 1543, apresentando uma concepção do universo que rompeu com uma teoria que perdurou por 20 séculos, é considerado por muitos estudiosos o ponto de partida da revolução científica.

De acordo com Danilo Marcondes (2001), Copérnico, utilizando-se de cálculos matemáticos para calcular os movimentos dos corpos celestes, chega a “um modelo de cosmo em que o Sol é o centro (sistema heliocêntrico), e a Terra apenas mais um astro girando em torno do Sol”.

No entanto o interesse pelas ciências naturais começa a ser retomada bem antes das descobertas apresentadas por Copérnico. Especialmente, a partir da reintrodução na Europa da obra de Aristóteles pelos Árabes. De início Copérnico não tinha como objetivo refutar o pensamento grego, pelo contrario. Buscava resgata-ló, especialmente a concepção platônica inspirada nas contribuições de Pitágoras. Mas acabou afirmando algumas concepções Aristotélicas e rebatendo outras.

Nessa linha, Danilo Marcondes (2001) afirma que “embora a revolução científica moderna inspire-se muito em Platão, pela valorização da matemática na explicação do cosmo, e nos pitagóricos, que já teriam antecipado o modelo heliocênctrico proposto por Copérnico (segundo ele próprio admite), Aristóteles é o responsável pela ênfase na pesquisa experimental e na importância da investigação da natureza.”

Portanto inspirando-se em Platão, Aristóteles e nos pitagóricos, se criará a ciência moderna. Que surgirá, de acordo com Danilo Marcondes (2001), “quando se torna mais importante salvar os fenômenos e quando a observação, a experimentação e a verificação de hipóteses tornam-se critérios decisivos, suplantando o argumento metafísico”.  Porém, nosso filósofo salienta que esse processo não se deu de uma hora para outra. “Como quase sempre na história das ideias” foi necessário “um longo processo de transição”. E para que tal processo revolucionário se consolidasse foi fundamental a contribuição de diversos pensadores em diversas áreas. É para o que chama atenção Danilo Marcondes (2001) ao afirmar que “ao longo desse processo, desde os franciscanos do Merton College (séc. XIV) até Galileu (1564 - 1642) e Newton (1643 - 1727) temos diferentes pensadores, filósofos, teólogos, matemáticos, astrônomos, que contribuíram com diferentes ideias, levando finalmente às profundas transformações na visão científica do séc. XVII, tanto em relação ao modelo de cosmo quanto aos aspectos metodológicos da ciência moderna’’.

Danilo Marcondes (2001) aponta dois fatores que foram fundamentais para a consolidação das transformações que ocorreram com a revolução cientifica moderna: 1) Do ponto de vista da cosmologia, a demonstração da validade do modelo heliocêntrico, empreendida por Galileu; a formulação da noção de um universo infinito, que se inicia com Nicolau de Cusa e Giordano Bruno; e a concepção do movimento dos corpos celestes, principalmente da Terra, em decorrência do modelo heliocêntrico;  2) Do ponto de vista da idéia de ciência, a valorização da observação e do método experimental, isto é, uma ciência ativa, que se opõe à ciência contemplativa dos antigos; e a utilização da matemática como linguagem da física, proposta por Galileu sob inspiração platônica e pitagórica e contrária à concepção aristotélica. A ciência ativa moderna rompe com a separação antiga entre a ciência (episteme), o saber teórico, e a técnica (techne), o saber aplicado, integrando ciência e técnica e fazendo com que problemas práticos no campo da técnica levem a desenvolvimentos científicos, bem como com que hipóteses teóricas sejam testadas na prática, a partir de sua aplicação na técnica.

A consolidação da revolução cientifica só foi possível a partir de uma junção de fatores, e que diversos pensadores contribuíram, sobretudo durante os séculos XV e XVII. Em alguns casos rompendo com as concepções clássicas totalmente, em outros se inspirando nelas. Para Marcondes (2001) “só com Newton, praticamente já no séc. XVII, é que teremos a formulação de uma ciência físico-matemática plenamente elaborada em um sistema teórico.”

Um ponto a se destacar é que a revolução científica não avançou sem oposição, pelo contrário. Mesmo com o renascimento e a reforma protestante a ciência moderna não deixou de ser criticada e perseguida, especialmente por separar a natureza humana da natureza do universo. 

De acordo com Marcondes (2001) “a reforma protestante valoriza o individualismo e o espírito crítico, bem como a discussão de questões éticas e religiosas. A revolução científica pode ser considerada uma grande realização do espírito crítico humano, com sua formulação de hipóteses ousadas e inovadoras e com sua busca de alternativas para a explicação científica; porém, ao tirar a Terra do centro do universo e ao trazer para o primeiro plano a ciência da natureza, se afasta dos temas centrais do humanismo e da Reforma, sofrendo em muitos casos a condenação tanto de protestantes quanto de católicos”.

Tal critica por um lado pode ser explicada pelo fato de que a ciência deixa as questões humanas de lado, e passa a tratar o homem como uma máquina. Passa a vigorar uma visão mecanicista da sociedade – que vai de encontro aos interesses da nova classe no poder (a burguesia) e contribuindo para o desenvolvimento do modo de produção capitalista em ascensão.

No campo filosófico Descartes vai dedicar-se em suas obras a refutar as criticas e a reafirmar a importância da ciência moderna. Defendendo as novas teorias científicas e o modelo de ciência em desenvolvimento.

Conclusão

A revolução cientifica teve inicio a partir da concepção copernicana sobre ás orbes celestes. Neste trabalho ele apresentou o modelo heliocêntrico, rompendo por tanto com uma concepção do universo, defendida por Ptolomeu, inspirado na concepção aristotélica, que prevaleceu por mais de 200 séculos. 

Quando fez tal descoberta Copérnico não buscava romper com o pensamento grego, mas sim resgata-ló, inclusive as próprias concepções aristotélicas. No entanto ao apresentar o modelo heliocêntrico, o conservador Copérnico fez uma revolução, a chamada revolução copernicana.

No entanto foi a partir das descobertas de Galileu que o modelo heliocêntrico pode ser validado, superando definitivamente a concepção ptolomaica. Aliás, é na obra de Galileu que vemos as principais bases para o surgimento das ciências modernas. O gênio italiano irá utilizar-se da matemática como linguagem da física, inspirando-se em Platão e Pitágoras. Com isso não terá uma vida fácil, será perseguido politicamente e religiosamente, será acusado de heresia e excomungado pela igreja católica. Também será condenado a prisão domiciliar até sua morte.

A chamada revolução cientifica teve o seu apogeu entre os séculos XV e XVII, e diversos pensadores deram a sua contribuição para que esse processo se desenvolvesse e se consolidasse, mesmo antes da revolução copernicana, que é tida como o ponta pé inicial dessa revolução – que não se deu a partir de uma ruptura imediata, mas de um longo processo que durou alguns séculos.

A revolução cientifica não trouxe apenas uma nova visão onde  a terra e o homem não são mais o centro do universo. Como também contribuiu para que houvesse  mudanças profundas na sociedade – transformando a percepção e o modo de vida do homem medieval. 

O movimento renascentista e a reforma protestante também foram significativos para que a revolução cientifica triunfasse. No entanto, por botar as questões humanas em segundo plano, a revolução cientifica sofreu ataques tanto da igreja católica como dos reformadores.

Por tanto o caminho percorrido por diversos pensadores, entre eles Copérnico e Galileu, não foi fácil. As descobertas desses gênios contribuíram decisivamente para uma quebra de paradigma e para o surgimento de uma nova sociedade – onde a igreja perde sua influência drasticamente e o poder da nobreza é enterrado. Surgindo então a burguesia e  o modo de produção capitalista – sendo que as ciências terão um papel decisivo para consolidação dessa nova ordem dominante. 

Pedro Ferreira Nunes – é Educador Popular e licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Tocantins. 

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Referência

Marcondes, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a wittgenstein. 6º ed – Rio de Janeiro. Jorge Zahar ed., 2001.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Eduardo Gomes e o governo Bolsonaro: A história não absolverá

Após as eleições de 2018 escrevi um artigo no qual colocava o recém eleito Senador da República – Eduardo Gomes, como o maior vencedor do processo eleitoral no Tocantins. Além disso apontava que pelo seu perfil, ele logo se tornaria a principal figura política do Tocantins a nível nacional. Dito e feito. Ao assumir sua cadeira no senado, Eduardo Gomes se transferiu do Solidariedade (SD) para o Movimento Democrático Brasileiro  (MDB), foi eleito para a mesa diretora do Senado e tornou-se o líder do governo Bolsonaro no Congresso Nacional.

Alguns comentaristas políticos avaliavam como um erro a troca de legenda feita por Eduardo Gomes. Sobretudo após o que havia acontecido com a senadora Kátia Abreu – que entrara no MDB bancada pela direção nacional do partido, mas que a nível regional nunca fora totalmente aceita e acabou sendo expulsa. Esqueceram no entanto que há uma diferença significativa entre Kátia Abreu e Eduardo Gomes. Enquanto a primeira é mais da linha do conflito, o segundo é do consenso.

Foi por esse perfil que ele chegou a liderança do governo Bolsonaro no Congresso Nacional em substituição a Joice Hasselmann (PSL) que era mais da linha do conflito. Sem dúvida chegar a liderança de governo é uma posição privilegiada e aumeijada por muitos parlamentares – e Eduardo Gomes no seu primeiro mandato como senador conseguiu isso. O seu perfil conciliador também ajuda para que ele não entre em conflito com os emidebistas históricos do Tocantins. 

No Congresso Nacional, Gomes tem desempenhado o seu papel de líder do governo com discrição – o que não é algo fácil pelo fato de que os maiores obstáculos que enfrenta como lider  é criado pelo seu próprio governo. Com isso ele tem que atuar como uma espécie de bombeiro apagando incendios criado por aqueles que deveriam evitá-los. Ao fazer isso sem chamar os holofotes para si, o deixa fora da linha de fogo de um presidente que não aceita que ninguém no seu governo apareça mais do que a si próprio.

Muito provavelmente, a sua militância na extinta União do Tocantins  (UT) ao lado do velho Siqueira Campos – uma figura que politicamente não é muito diferente do Bolsonaro – contribua para que ele consiga desempenhar o papel que vem desempenhando. Mas isso, não sem ônus. Sobretudo na medida que ele tem que relativizar a postura do presidente no combate as crises como a pandemia de COVID-19 ou das atitudes antidemocraticas contra o parlamento e o judiciário. Ao fazer isso Eduardo Gomes caminha de mãos dadas com Bolsonaro e demais integrantes desse governo para a lata de lixo da história.

Gomes não chega ao nivel de mediocridade que caracteriza figuras do governo como os parlamentares Eduardo Bolsonaro e o Major Vitor Hugo. Ou dos ministros Abrahm Weintraub, Ricardo Salles, Ernesto Araújo, Paulo Guedes e o General Augusto Heleno. Mas ultimamente tem dado declarações com repercussão nacional como “é uma injustiça colocar nas costa do presidente as polêmicas do isolamento” (Jornal A tarde). Em outras declarações, Gomes também fortalece o discurso de vitimismo do presidente ao dizer, segundo Andrade e Brant (Uol), “que ninguém foi tão atacado ou precisou se defender como o presidente Bolsonaro” e ainda salienta que a carreira política do presidente foi interpretada de modo injusto”. Para encerrar, recentemente declarou que na sua visão o governo Bolsonaro é  um “governo corajoso e bem intencionado” (Jornal A tarde). 

São declarações que não condizem com a realidade e não me darei o trabalho de desmontar uma a uma. Você camarada que lê essas linhas busque as declarações do presidente, analise-as e conclua por conta própria se o discurso do senador se sustenta ou não. Sei que alguns dirão que ele está apenas fazendo o seu trabalho de líder do governo que se resume em exaltar os feitos e ignorar os problemas. 

Bom, se ele se dispôs a fazer esse papel no jogo político atual, é bom que esteja preparado a arcar com as consequências. O que não pode é se iludir achando que ao fazer parte desse desgoverno conseguirá sair dele integro. Pois todas e todos que tem contribuído de alguma forma para sua sustentação tem a sua cota de responsabilidade pelo que está acontecendo e pelo que acontecerá. Pode até acontecer das urnas os absolverem, mas a história certamente não o fará. 

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Tocantins. 

quarta-feira, 20 de maio de 2020

O conto “o matadouro” e a violência como método de governo

A atual situação política no Brasil me fez recordar o conto “o matadouro” escrito no século XIX pelo escritor argentino Esteban Echeverría. Nessa importante obra da literatura latino-americana podemos perceber para onde caminhamos quando a violência se torna método de governo – todos os conflitos são resolvidos não por uma discussão racional mas pela violência.

Ao descrever esses conflitos Echeverría ressalta que “a cena representada no matadouro era para ser vista, não escrita”. Não sendo possível ele nos legou essa narrativa na qual podemos imaginar a cena que vai se tornando real na medida que olhamos para o contexto político que estamos vivendo hoje no Brasil. Assim, ele a descreve:

“De um lado, dois rapazes se adestravam no manejo da faca, trocando horrendas cutiladas e espadeiradas; do outro, quatro já adolescentes, discutiam a cutiladas o direito à tripa gorda e ao mondongo que roubaram de um açougueiro; e não longe deles um bando de cachorros, já magros pela forçada abstinência, peleava da mesma maneira para saber com quem ficaria um fígado envolto em lama”.

Nessa cena podemos perceber o homem e  o cachorro reduzidos ao mesmo patamar. O homem quando decide resolver os conflitos políticos e sociais através da violência acaba se rebaixando a condição de um cachorro. Echeverría diz que era assim que as coisas funcionavam no seu país sob a ditadura do sangüinário Rosas. E aqui está o ponto Central para se compreender o conto “o matadouro” – a situação política na Argentina nesse período. 

Mais do que relatar os acontecimentos de um certo dia num matadouro em Buenos Aires, Echeverría denúncia a situação política no seu país marcado pela perseguição e violência do grupo no poder contra os opositores. Desse modo ao mesmo tempo que ele fala do matadouro como o lugar onde se sacrificavam os gados que alimentavam o terço da população que tinha o privilégio de comer carne naquela cidade. Ele também estava se referindo ao seu país dividido politicamente entre federalistas e unitários. 

“O aspecto do matadouro, a distância, era grotesco, cheio de animação. Quarenta e nove reses estavam estendidas sobre suas peles, e cerca de duzentas pessoas pisavam o solo de lama regado com o sangue de suas artérias. Ao redor de cada rés se sobressaía um grupo de figuras humanas de tez e raça distintas”.

Echeverría começa falando da situação de calamidade em Buenos Aires com a abstinência de carne. Situação que se agrava com as chuvas torrenciais que derrama sua fúria sobre a cidade impedindo o funcionamento do matadouro. A igreja se coloca a favor da abstinência sobretudo por se tratar do período de quaresma. E vê as chuvas como um castigo aos pecadores que zombam da fé. Do outro lado os médicos alertam “que, se a carência de carne continuasse, metade da população perderia os sentidos por estarem os estômagos acostumados à sua seiva animadora”. Ele continua: 

“Era de notar o contraste entre estes tristes prognósticos da ciência e os anátemas lançados dos púlpito pelos padres contra toda espécie de nutrição animal e promiscuidade... originou-se daí, uma espécie de guerra interna entre os estômagos e as consciências”.

Com a chuva indo embora e os prognósticos por parte da igreja acerca do fim do mundo não se realizando e com o surgimento de alguns tumultos nos quais o governo enxergava o dedo de revolucionários. Por mais acordo que “o restaurador” (como era denominado o ditador) tinha com a igreja, decidiu-se por uma exceção – matar 50 novilhos para alimentar os velhos e as crianças. 

Seria mais um dia de matança como outro qualquer se não fosse o fato de que o último novilho a ser sacrificado era na verdade um touro – coisa que era proibida por ali. Mas diante da escassez de carne o fiscal responsável deixou passar. O touro resistiu como pode mas não teve um destino diferente dos outros. Não conseguiu escapar da fúria do Matasiete – ídolo daquela gente pela fama de ser matador de unitários.

“Está emperrado e arisco como um unitário...

Ao ouvir esta palavra mágica todos, a uma só voz, exclamaram:

- Morram os selvagens unitários!

- Levem os f... da p... para o vesgo.

- Sim, para o vesgo, que é homem de c... para pelear com os unitários. O matambre para o Matasiete, degolador de unitários! Viva o Matasiete!”

Eis ai um lugar governado pela violência, a violência é a resposta para tudo. Não há diálogo pois o outro é visto como um selvagem. Sendo um selvagem não tem alma e se não tem alma pode ser exterminado. Nesse lugar quanto mais violento for, mais poder terá perante os demais. Alguns podem achar que é apenas discurso e por tanto se deve relativizar algumas declarações. Não vêem ou não querem enxergar o caminho perigoso que estamos seguindo quando aceitamos como normal o culto a torturadores e outros criminosos.

“Em dois tempo, o maldito touro foi esquartejado e pendurado na carreta. Matasiete colocou o matambre sob a pele de suas provisões e se preparou para partir. A matança estava concluída às doze, e a pequena populaça que a presenciou até o fim se retirava em grupos a pé e a cavalo, ou puxando a cilha de alguns volumes de carne”.

Mas a história não acaba aí. Para encerrar, Echeverría nos mostra do que essa gente é capaz quando não encontra limite.

De repente um açougueiro avistou ao longe um jovem vindo á cavalo e imediatamente alertou os demais dizendo se tratar de um unitário. Daí não é difícil imaginar o destino daquele pobre miserável que caíra na mão daquela corja, que tinha como herói Matasiete.

“Matasiete era homem de poucas palavras e muita ação. Tratando-se de violência, de agilidade, de destreza no machado, na faca ou no cavalo, não falava, agia... – Viva Matasiete! Exclamou toda aquela populaça, caindo em tropeu sobre a vítima como urubus-caçadores rapaces sobre os ossos de um boi devorado pelo tigre”.

Falando do nosso contexto político atual, virou praxe as reações indignadas, através de notas públicas e declarações em redes sociais, contrária as declarações do Sr. Jair Bolsonaro. Sinceramente não sei se fico mais indignado com o que diz o presidente ou com essas reações. Por acaso esperavam outra postura de alguém com todo o histórico que tem o Sr. Bolsonaro? Não sejamos tão ingênuos assim. Não esperemos uma postura democrática de alguém que cultua a ditadura militar e que tem como herói os mais sanguinários ditadores que pisaram o continente americano.

É preciso mais do que notas públicas e declarações indignadas nas redes sociais para barrar o projeto de nação que essa corja no poder tem em mente. Se não essas reações acabam servindo apenas como álibi para justificar os ataques a democracia – o governo Bolsonaro se coloca como vítima, como alguém que está sendo perseguido por desafiar o “sistema”. Com isso inflama no seu exército de seguidores o ódio contra qualquer um que ousa contrapo-ló. E o método de ação desses seguidores não é outro se não a violência – de início no ambiente virtual. Mas enganasse quem acha que parará por ai. Pois quando a violência se torna um método de governo o destino da nação não será outro se não se transformar num matadouro. 

Em “o  matadouro” Esteban Echeverría nos alerta: “naquele tempo, os açougueiros devoradores do matadouro eram os apóstolos que propagava, empunhando vara e punhal, a federação do ditador Rosas, e não é difícil imaginar que federação sairia de suas cabeças e cutelos”. Hoje no Brasil temos um governo que tem como apóstolos milicianos (que são uma espécie de açougueiros de gente), e não é dificil imaginar o tipo de nação que querem construir.

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Tocantins.