Por Pedro Ferreira Nunes
Em
Dolls, Takeshi Kitano nos apresenta uma estória violenta e poética
ao mesmo tempo – estória de alguns personagens que ao romper com
ás tradições da sociedade japonesa acabam tendo um destino
trágico. No embate entre manter a tradição ou subverte-la, entre
cumprir o dever com a coletividade ou satisfazer sentimentos
individuais percebemos uma discussão entre ética e moral. Nessa
linha salientamos o pensamento de Adolfo Sanchez Vasquez a cerca
dessa questão. Para este autor as questões éticas não dizem
respeito apenas a nós, mas também a outras pessoas. Já a moral são
atos e formas de comportamento dos homens em face de determinados
problemas. (Vasquez, 1984). Logo nosso objetivo nesse breve artigo é
abordar a questão ética e moral á partir da perspectiva de Adolfo
Sanchez Vasquez no filme Dolls de Takeshi Kitano. Antes faremos uma
breve abordagem a cerca da questão da coletividade versus
individualidade, relacionando tal temática com a influência do
pensamento de Confúcio na sociedade japonesa. E ainda nessa linha
faremos uma relação do problema a cerca da coletividade versus
individualidade com a questão da esfera pública e da esfera privada
a partir do pensamento de Hanna Arendt. E por fim abordaremos a
violência apresentada em Dolls – uma violência que não é
explicita, mas que não deixa de ser impactante. Aliás, o impacto da
violência em Dolls esta no fato de que ela não é explicita.
Dolls
e a questão da coletividade versus individualidade
O
problema a cerca do dever com a coletividade versus a individualidade
– de manter a tradição ou subvertê-la é uma das questões
centrais que percebemos nas estórias dos personagens de Dolls. Por
exemplo, quando Matsumoto decide abandonar o casamento no ultimo
momento com a filha do Chefe para resgatar sua antiga noiva que
tentara o suicídio após o termino da relação. Já Nukui abandona
o seu dever no trabalho para se aproximar do seu ídolo. E Hiro ao
romper com as regras rígidas da máfia ao se relacionar em público
com sua amada. Em todas essas estórias percebemos o rompimento com o
dever com um coletivo para satisfação de desejos individuais. E
nesse embate entre deveres coletivos e sentimentos individuais
percebemos a influência da filosofia confucionista que ainda hoje
tem forte presença na cultura japonesa.
Segundo
Ferreira (2008) “a manutenção desse pensamento se dá não apenas
num estabelecimento de uma relação hierárquica dentro da
sociedade, mas principalmente na força de um pensamento que valoriza
o sentimento comunitário, o pertencimento a um grupo, que pode ser a
família, a turma, a empresa, acima das individualidades. As relações
hierárquicas vão se estabelecer muitas vezes dentro desse
sentimento de grupo”. Logo quando os personagens de Dolls rompem
com essa logica acabam sendo punidos – todos acabam tendo um
destino trágico por romperem com a tradição, com o dever, com a
coletividade. E tais decisões acabam desencadeando uma cadeia de
violência. Que, aliás, é uma característica desse filme.
A
violência em Dolls ou a beleza da dor
Em
Dolls, Takeshi Kitano nos apresenta uma perspectiva diferente da
violência. Não aquela violência de uns contra os outros que
geralmente vemos no cinema, mas sim uma violência contra si mesmo –
uma espécie de autopunição, de autodestruição. É o que
percebemos, por exemplo, na estória do fã (Nukui) que cega os
próprios olhos para se aproximar do seu ídolo – e como
consequência acaba morrendo atropelado. Ou do casal de mendigos
acorrentados (Sawako e Matsumoto) que caminham para o precipício. Ou
do chefão da máfia (Hiro) que por tentar reviver um antigo romance
do passado acaba sendo assassinado por não cumprir as regras que seu
cargo de chefe da máfia exige. Também podemos afirmar que a
violência que mais chama atenção em Dolls não é a violência
explicita, mas sim aquela que está em pequenos gestos como, por
exemplo, quando o fã pega o estilete para furar os olhos – não
precisamos vê-lo furando os olhos para sentir a dor, ou quando o
mesmo é atropelado e vemos apenas o vermelho do seu sangue – não
precisamos ver o seu corpo ensanguentado para sentir a dor. Já no
caso do chefão da máfia a violência não esta quando ele leva os
tiros, mas nos segundos antes quando ele olha para os seus capangas
que o esperam no carro e percebe que será morto pelas costas. E no
caso do casal de mendigos acorrentados é o momento em que ele pega a
corda e fica analisando-a, pensando no que irá fazer. Ali percebemos
o ponto extremo a que eles chegaram e que os levará para o abismo.
Segundo
Ferreira (2012) “em Dolls destaca-se uma violência que não é
física, mas sim uma violência dos sentimentos, presente nas
relações entre os personagens, na impossibilidade de realização
desses relacionamentos”. Porém toda essa violência nos é
apresentada de uma forma poética, de uma forma bela. E a beleza tal
como a violência esta nas ações e nos gestos. Ações que os levam
a romper com os “status cos”, com o pensamento hegemônico, com o
“tu deves” – ações que são “gritos de liberdade preso na
garganta”. (Garatos Podres, 1993). Ainda nessa linha sobre a forma
poética como a violência é apresentada em Dolls é importante
destacar a contribuição de Ariano Suassuna ao analisar o pensamento
de Aristóteles sobre as categorias de beleza, em especial o sublime
e o trágico. Para Suassuna (2008) o Sublime é aparentado com o
Trágico, por que ambos despertam o terror e a piedade. A distinção
entre os dois se encontra no fato de que enquanto o Trágico é
despertado por uma ação, o Sublime se dá pelo pensamento. Logo
podemos afirmar que o Sublime está ligado mais as artes literárias,
como por exemplo, a poesia épica e a filosofia. Já a tragédia esta
mais ligada ao Teatro. E é justamente no Teatro Bunraku que Takeshi
Kitano vai se inspirar para contar as estórias trágicas e violentas
de seus personagens no filme Dolls.
Dolls
e a questão da esfera pública e da esfera privada
Para
Arendt (2011) a esfera pública é aquilo que é comum a todos. Logo
“a esfera pública, enquanto mundo comum reúne-nos na companhia
uns dos outros e, contudo evita que colidamos uns com os outros”.
(Arendt, 2011). Percebemos ai a questão do dever – o dever é
fundamental para que não colidamos uns com os outros. A coletividade
também contribui para que não caminhemos para o isolamento radical.
E a partir dai para um processo de negação da pluralidade que pode
levar os homens a se tornarem seres privados. Privados no sentido de
não conseguir dialogar com o outro. Podemos perceber tal fato em
Dolls, sobretudo na estória de Matsumoto e Sawako que caminham para
um completo isolamento.
Por
outro lado Arendt (2011) também ressalta o risco de se perder a
privacidade. Das pessoas não terem direito a viver seus sentimentos
para atender o coletivo. Nessa linha a esfera privada acaba se
tornando um refugio para o homem diante do mundo comum. Sendo que
quando se vive apenas em público acabaríamos tendo uma vida
superficial. É justamente disso que os personagens de Dolls buscam
fugir – de uma vida superficial. Pois se aceitasse se casar com a
filha do chefe Matsumoto não estaria fazendo o que gostaria mais sim
a vontade dos seus pais. Logo o que resultaria de uma união forçada
era uma vida superficial. Da mesma forma Nukui e Hiro.
Segundo
Arendt (2011) “não é de forma alguma verdadeiro que somente o
necessário o fútil e o vergonhoso tenham o seu lugar adequado na
esfera privada. O significado mais elementar das duas esferas indica
que há coisas que devem ser ocultadas e outras que necessitam ser
expostas em público para que possam adquirir alguma forma de
existência”. A partir dessa reflexão percebemos como é
fundamental garantir a existência tanto de uma esfera pública como
de uma esfera privada. Á perca de uma dessas ou das duas é
perigoso. Nesse sentido podemos concluir que se Matsumoto, Nukui e
Hiro optassem por atender aos deveres coletivos, ao invés de
sucumbir aos sentimentos individuais, não teriam um destino menos
trágico. Pois abrir mão da nossa individualidade de viver o que
sentimos para assumir o papel que a sociedade nos impõe não deixa
de ser uma violência, uma tragédia. Logo é preciso buscar um meio
termo – onde o público e o privado coexistam. Porém em uma
sociedade tradicional e hierárquica isso não é uma tarefa fácil.
Dai que a saída do auto sacrifício parece ser uma perspectiva mais
honrosa. E foi justamente esse o caminho trilhado por Matsumoto e
Sawako – o casal de mendigos acorrentados, pelo jovem Nukui – o
fã que cegou os olhos, e por Hiro – o chefe da máfia.
Dolls
e a questão ética e moral
O
problema central em Dolls é a cerca do dilema entre manter a
tradição ou subverte-la, em cumprir os deveres com o coletivo ou
realizar seus desejos individuais. Nas estórias que se entrelaçam
os personagens decidem romper com o coletivo para viver seus desejos
individuais. Eles decidem se isolar na esfera privada e se afastarem
completamente da esfera pública. E tal decisão acaba os levando
para um final trágico. Por outro lado, se eles houvessem optado em
seguir um caminho oposto, isto é, se cumprissem os deveres exigidos
pelo coletivo, teriam tido um destino menos trágico? Como afirmamos
anteriormente, acreditamos que não. E do ponto de vista da ética e
da moral como podemos ver essa questão central que nos apresenta
Takeshi Kitano em seu Dolls? Antes propriamente de abordar essa
questão nos cabe aqui brevemente diferenciar a ética de moral.
Nessa
linha ressaltamos que a ética é generalista, logo seus princípios
devem ser universais. Ela se torna, portanto de caráter mais teórico
do que prático. Logo o que se faz concretamente está mais ligado à
questão moral do que ética. Sendo assim, a ética esta ligada a
teoria enquanto a moral a prática. Diante disso fica claro que em
Dolls as ações dos personagens são de ordem moral e não éticas.
É
possível falar em comportamento moral somente quando o sujeito que
assim se comporta é responsável pelos seus atos, mas isto, por sua
vez, envolve o pressuposto de que pôde fazer o que queria fazer, ou
seja, de que pôde escolher entre duas ou mais alternativas, e agir
de acordo com a decisão tomada. O problema da liberdade da vontade,
por isso, é inseparável do da responsabilidade. (Vasquéz,
1984)
Matsomoto,
Sawako, Nukui e Hiro agiram moralmente pelo fato de que todos eram
responsaveis pelos seus proprios atos, tinham mais de uma opção, e
quando decidiram por tal opção seguiram até as ultimas
consequências. Logo ao exercerem a liberdade de escolha, tiveram que
arracar com as responsabilidades adivindas de suas decisões. Mas
esse comportamento moral baseado na individualidade choca com a
moralidade hegemonica. Isto é, com a moralidade da comunidade. E
isso percebemos claramente em Dolls, um conflito entre morais
distintas. Tal fato é uma caracteristica de uma sociedade
fundamentada na divisão de classes, concepções diferentes de
morais, e, por conseguinte uma disputa entre estas. Assim Vasquéz
(1984) vai afirmar que a moral tende a se diversificar de acordo com
os interesses antagonicos. E isso contribuie para que se tenha um
progresso moral. Claro que numa sociedade tradicionalista e
hierarquica como é a japonesa esse progresso moral é um tanto mais
lento como em outros países – onde existe uma maior disputa de
classes e, por conseguinte de morais. É justamente nesse interim que
entra a ética.
Segundo
Vasquéz (1984) “A ética parte do fato da existência da história
da moral, isto é, toma como ponto de partida à diversidade de
morais no tempo, com seus respectivos valores, princípios e normas.
Como teoria, não se identifica com os princípios e normas de
nenhuma moral em particular e tampouco pode adotar uma atitude
indiferente ou eclética diante delas. Juntamente com a
explicação de suas diferenças, deve investigar o princípio que
permita compreendê-las no seu movimento e no seu
desenvolvimento”.
Nessa
linha podemos fazer uma leitura de Dolls como uma obra que aborda a
questão ética – o filme de Takeshi Kitano não busca determinar
ou criar uma nova moral, mais sim analisar a história da moral no
Japão e como ela se consolidou. Uma moral hegemônica baseada num
dever com o coletivo, com a hierarquia e a tradição. Mas sem
esconder os conflitos morais que existe no país. Assim Kitano
contribui com seu filme não apenas para que compreendamos a moral ou
as morais japonesa, mas também o seu desenvolvimento.
Conclusão
Partindo
da concepção de que a Filosofia possui problemas, sendo que segundo
Porto (2002) a unidade dinâmica interna desses problemas é o que
está na base da multiplicidade e da mudança de temas e opiniões. E
ainda que o caminho para entendermos um autor é ver a sua filosofia
como resposta “ao” problema que ele se coloca. Assim buscamos
analisar e compreender o filme Dolls
do cineasta Japones Takeshi Kitano a partir dos problemas filosoficos
que ele nos apresenta, isto é, a questão da esfera pública e da
esfera privada e a questão da ética e da moral. E para compreender
essas questões buscamos as reflexões dos filosofos Aldofo Sánches
Vasquéz e de Hanna Arendt. O que nos levou a concluir que a ética e
a moral é um tema central discutido em Dolls.
Referências
bibliográficas
ARENDT,
H. A Condição
humana. 10º ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2011.
FERREIRA,
GUSTAVO HERINQUE LIMA.
Dolls: O teatro Bunraku no cinema de Takeshi Kitano. UFRN -
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil. AVANCA | CINEMA
2012.
GAROTOS
PODRES. Aos fuzilados
da CSN. CD canções para ninar. Vol. 01 – São Paulo:
Independente, 1993.
PORTO,
MARIO ARIEL GONZALEZ.
A filosofia a partir de seus problemas. São Paulo: Ed. Loyola, 2002.
SUASSUNA,
ARIANO. Iniciação á
Estética. – 9º edição – Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.
VÁSQUEZ,
ADOLFO SÁNCHEZ.
Ética. - 4º ed. Barcelona: Editorial critica, 1984.