quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Jogos Estudantis do Tocantins e Ritos de passagens

Os jogos estudantis podem ser considerados ritos de passagem? A priori a minha resposta seria sim. Sobretudo depois da minha experiência recente de participação nos jogos estudantis do Tocantins (JETS), como parte da Comissão Técnica. Observar o comportamento dos alunos-atletas me fez voltar no tempo – de quando eu me encontrava na mesma posição daqueles jovens – representando a minha escola no time de futsal masculino. 

Para responder a nossa pergunta é necessário definirmos o que são ritos de passagem. 

Bem, ritos de passagem, pode ser definido como mudanças significativas que marcam nossas vidas. Por exemplo, a passagem da adolescência para vida adulta. Nesse processo de transição há um conjunto de acontecimentos que vão marcando nossas vidas. Dependendo da cultura em que estamos inseridos esses acontecimentos são vivenciados de diferentes formas. Numa análise superficia nos parece que há por trás dessa ideia a concepção filosófica de que somos seres sociais. E que por tanto nossa identidade é construída a partir das relações socioculturais.

Voltando a questão dos ritos de passagem é importante destacar que se trata de um objeto de estudo da antropologia. E tem sobretudo em autores franceses, importantes contribuições. Por exemplo, Van Gennep que no início do século XX publicou uma obra onde se dedica ao estudo desse tema propondo a seguinte divisão: ritos de separação, que seria o caso de formatura ou sepultamento; ritos de margem, como o período da gravidez ou noivado; e os ritos de agregação, como batismo ou casamento. Lévi-Strauss por sua vez aponta que os ritos de passagem tem um papel de coesão social. Ou seja, de manutenção da união do grupo. E a partir dai para uma ideia de continuidade por meio da conservação de tradições. Já Claude Rivière chama atenção para os ritos de passagem que estão presente no nosso cotidiano e que muitas vezes nem damos conta disso. Ele destaca por exemplo os ritos que há no ambiente escolar, desde a chegada, o cumprimento de horário e as atividades desenvolvidas. Para Rivière esse processo terá na adolescência a sua fase mais crítica já que é nessa fase onde o jovem sofrerá um conflito interior expressado por um comportamento muitas vezes antisocial. Romper ou continuar com as tradições familiares eis um dos principais dilemas com os quais os jovens se deparam. 

Esse dilema é representado em diferentes obras de arte, sobretudo na música popular como podemos destacar em canções como herdeiro da pampa pobre, da banda gaúcha Engenheiros dos Hawaii:

“passam às mãos da minha geração/Heranças feitas de fortunas rotas/Campos desertos que não geram pão/Onde a ganância anda de rédeas soltas./Se for preciso eu volto a ser caudilho/Por essa pampa que ficou pra trás/Por que não quero deixar pro meu filho/ A pampa pobre que herdei de meu pai”.

Bem, agora que temos mais claro o que são ritos de passagem. Vamos conhecer o que são os jogos estudantis do Tocantins  (JETS). 

O JETS nada mais é do que uma tradicional competição esportiva promovida pela Secretaria da Educação do Tocantins (SEDUC-TO). Seguindo a tradição grega fundamentada na Paidéia. Ou seja, numa formação integral dos indivíduos. Não por acaso os jogos estudantis são inspirados nas olimpíadas e mais importante do que a competição são os valores éticos promovido por meio dos jogos. Nessa perspectiva não basta demostrar talento para o esporte, o aluno-atleta tem que provar ser um indivíduo ético – que respeita as normas estabelecidas. Para tanto se faz necessário mostrar certa maturidade.

Para muitos é a primeira experiência de uma vivência longe de casa. Pela primeira vez irão conviver, ainda que por um curto período, com pessoas diferentes do seu cotidiano. E isso exige um outro nível de comportamento. Por exemplo, a submissão a regras de convivência que não existe no ambiente doméstico. O que em certa medida aponta para o que será a vida adulta.

Guardo com muito carinho a lembrança da minha participação no JETS enquanto estudante. Lembro que a nossa atuação  na competição foi um desastre. E talvez isso tenha me ajudado em certo sentido a me tocar que a carreira de atleta não era para mim. Mas a sensação de participar do evento com um grupo de colegas queridos superou qualquer fracasso e permaneceu vivo na minha memória. Agora anos depois participando como parte da comissão técnica, eu me vi em vários meninos da nossa delegação. 

Enfim, eu acredito que ao retornar a escola esse estudante que participou do JETS não será mais o mesmo. A vivência que ele teve lhe coloca num nível de amadurecimento diferente dos demais. Por isso que considero esses jogos estudantis como um rito de passagem. Ainda não estamos falando de uma passagem para a vida adulta. Mas para uma nova percepção do mundo, certamente. Sobretudo diante das derrotas. Para esse jovem o mundo já não se resumirá a sua casa, a sua escola ou a sua cidade. E quem sabe a partir dai ele não tome consciência de que conseguir um lugar de destaque nesse mundo novo exige um esforço redobrado. 

Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular, Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. E Professor da Educação Básica no CENSP Lajeado.


sábado, 5 de agosto de 2023

Hilda e Malthus – O amor como libertação

Estamos na cidade do Rio de Janeiro, em plena didatura Civil-Militar. Grupos de manifestantes tomam as ruas para protestar contra o regime político que governa o país. Quando então são reprimidos de forma violenta. No meio do tumulto que se forma acontece o reencontro de Hilda e Malthus. Eles não dizem uma palavra se quer, a troca de olhares fala por si só. De repente é como se aquela realidade fosse suspensa e os dois se teletransportassem para o passado – para cidade onde se conheceram e se apaixonaram perdidamente. Em meio as lembranças, a sentença da cartomante se impõe: “ninguém foge ao seu destino”. Eles sorriem um para o outro no melhor estilo “e viveram felizes para sempre”, e a história então acaba.

A cena descrita acima é do seriado Hilda Furacão, produzido e exibido pela Rede Globo de Televisão em 1998. Dirigida por Wolf Maya, a obra é uma adaptação do romance homônimo escrito por Roberto Drummond, feito pela Glória Perez. Trata-se, na nossa análise, de uma das melhores obras da teledramaturgia brasileira a partir de um ponto de vista estético. Sem falar das questões que a obra suscita, sobretudo no campo da moralidade. De um lado temos Hilda – uma jovem de classe média que decide deixar para trás uma vida na alta sociedade e se entregar ao meretricio. Do outro Malthus – de origem humilde e que está sendo formado para o sacerdócio. Ou seja, temos aí um embate entre o moralismo cristão, sob influência platônica, que condena as paixões da carne. E uma perspectiva Nietzscheneana, que se opõem diametralmente a qualquer freio moral fundamentado na ideia de bem ou mal.

Para entendermos melhor essa questão voltemos um pouco na história de Hilda e Malthus. Ela abandona sua casa, e o noivo no altar, e vai parar na zona boêmia. Tornando-se a prostituta mais conhecida e desejada do lugar. Ele chega do interior para morar no seminário. Como pano de fundo temos nas ruas o embate entre direita e esquerda – nos momentos que antecede o golpe civil-militar de 1964. A zona boêmia vira alvo dos setores conservadores e ninguém melhor para liderar essa marcha do que um santo – é assim que Malthus é visto – como um santo.

É a partir daí que eles tem o primeiro encontro. E esse primeiro encontro, que se dá num clima de embate entre o bem e o mal. Acaba colocando a frente dois jovens que estão numa espécie de busca de autoconhecimento – apesar de se mostrarem, sobretudo ela, cientes do que querem. No fundo são apenas dois jovens que buscam se libertar da pressão social. O amor que surgirá dessa relação acaba fortalecendo tanto um como o outro nessa luta.

Inicialmente eles tentam negar e reprimir o que sentem um pelo outro. Afinal de contas é impensável o amor entre uma prostituta e um aspirante a santo. No entanto eles descobriram que o desejo é um afeto poderoso. E frea-lo não é tarefa fácil. Como era de se esperar, a iniciativa parte dela – que tem uma cabeça mais liberal. Ele mesmo com o peso de toda uma moral religiosa nas costas acaba não resistindo. 

Para entendermos melhor o dilema de Malthus, as palavras de Nietzsche sobre a fé cristã, em Além do Bem e do Mal (2007, p. 62), é esclarecedora: “A fé cristã é, desde seus primórdios, sacrifício: sacrifício de toda independência, de toda altivez, de toda liberdade de espírito, ao mesmo tempo escravidão, auto-humilhação, automutilação”.

É nessa condição que Malthus se encontra. Desse modo, o amor por Hilda vem liberta-ló. Para ela o amor por ele também significa libertação – libertação da autopunição que ela se impõe. O fato é que no final das contas ela está submetida a moralidade cristã, tanto quanto ele.

Quando então Hilda e Malthus decidem ficar juntos – quando o desejo se impõe acima de qualquer moralidade – o desejo na perspectiva aristotélica, ou seja: como apetite do que é agradável. Acontece uma fatalidade – Malthus é preso acusado de subversão pelos militares – que acabam de dar o golpe. E Hilda parte dali acreditando que ele desistira dela.

E aqui voltamos para o nosso início. Quando parecia que a história de amor de Hilda e Malthus teria um final triste. Sobretudo para os milhões de espectadores que abraçaram os dois, passando inclusive por cima de suas concepções morais. Acontece o reencontro. E não poderia ser num lugar melhor. Numa manifestação – uma manifestação não só contra o regime político que governava o país, mas contra toda uma sociedade decadente. Desse modo a história de amor entre Hilda e Malthus se inseri no espírito daquele tempo onde setores significativos da população clamava por mudanças. Tanto ele como ela lembram que essa mudança começa dentro de nós.

Por Pedro Ferreira Nunes – um rapaz latino americano que gosta de ler, escrever, correr e ouvir Rock in roll. 

terça-feira, 1 de agosto de 2023

A vida sem ela

Busco manter a mesma rotina de quando ela estava aqui. Levanto no mesmo horário. Organizo meu quarto, limpo a área, lavo a louça, molho as plantas. Cuido da casa como se a qualquer momento ela fosse chegar. Toda vez que ouço o alerta de uma mensagem no celular ou o toque de uma ligação lembro dela – da preocupação que ela tinha, quando não estava em casa, de saber como eu estava, assim como de me tranquilizar de como ela estava.

Tudo aqui lembra ela. E eu faço questão de não mexer em nada. Me dizem que seria melhor eu me mudar, seria mais fácil superar. Não sei não. Acho que ainda não estou preparado para deixar tudo para trás. Cuidar da casa, das coisas dela, é como se eu continuasse cuidando dela. Parece loucura, mas isso me conforta mais. Evito algumas fotografias, vídeos, as mensagens de voz dela que ficou no meu whatsApp. Mesmo assim há momentos que bate forte – quando a minha consciência me lembra que eu nunca mais terei sua companhia – há não ser as memórias do que vivemos.

Do que mais sinto falta é das nossas conversas – dos planejamentos que fazíamos. Dos sonhos infindáveis. – Ah, meu sonho era ter isso. Ah, o meu sonho era fazer aquilo. E lá ia eu realizar os desejos dela.

Nas minhas lembranças os últimos momentos dela são os mais presentes. Sempre vem na minha mente a nossa ida ao hospital e o desfecho final. Fico me questionando o que eu poderia ter feito de diferente para mudar aquele desfecho? Chego a me culpar, talvez se eu tivesse cobrado mais agilidade da equipe médica ou se, mesmo contra a vontade dela, tivessemos ido mais cedo buscar atendimento.  Mas busco não me prender a esse sentimento de culpa. Sei que fiz o que podia dentro das minhas possibilidades. E me tranquilizo em saber que poderia ter sido pior. Tenho certeza que se ela pudesse escolher uma forma de morrer seria aquela que não desse trabalho a ninguém. E assim foi.

Por outro lado, quando me lembro o quanto ela gostava da vida, de sair, de passear, de viajar, de conversar com as amigas – tinha muitas amizades (ao contrário de mim). Não tem como não lamentar. Sobretudo agora que ela tinha condição para tanto. Me lembro dela planejando de ir aos festejos do Senhor do Bonfim e depois para Goiânia conhecer a bisneta que havia nascido recentemente.

Se antes eu não era muito de sair de casa, agora sem ela muito menos. Continuo dando minhas corridas a tarde, varro regulamente as folhas do quintal e  mantenho a rotina do trabalho e do estudo – o que me ajuda a não ficar só pensando nela. A convivência na escola, sobretudo com os estudantes é um prazer. Eu realmente gosto de fazer o que faço. A leitura e a escrita também são coisas vitais para mim. Inclusive, escrever sobre ela.  

Através da escrita creio que me expresso melhor. Coloco no papel coisas que dificilmente falaria para alguém, a não ser para ela. E isso me faz bem. É como se fosse uma espécie de terapia. 

Enfim, assim tenho vivido sem ela. Creio que estou caminhando bem. Não sei até quando. As vezes falo para mim mesmo. – você não está bem e tudo bem. Se tem uma coisa que aprendi com a filosofia é encarar a realidade – que muitas vezes como uma dose de conhaque desce queimando.

Pedro Ferreira Nunes - in. Coletânea Simplesmente Amor, 2023.


sexta-feira, 30 de junho de 2023

Poema: Aulas do Projeto de Vida

Para os estudantes do Terceiro Período EJA – 2023/01

Que matéria é essa, professor?
Questionava a Maria Aparecida. 
Esse tal projeto de vida.
De onde que tiraram?

Lá ia eu 
tentar explicar.
Com um olhar desconfiado 
Eles me olhavam de lá. 

O Yuri no seu canto
Ficava a observar.
A Ketlem do outro lado 
Um caderno a rabiscar.

Eita João, agora vai 
Não pode desistir.
Queres ser Enfermeiro? 
Eu acredito em ti.

Lembro da primeira aula
Um estudante só. 
Não importava a quantidade 
Demos o nosso melhor. 

Qual o seu projeto de vida?
Onde pretendem chegar?
Que curso escolher?
Trabalhar ou estudar?

Um ótimo diálogo 
Essas questões suscitavam. 
E sem perceber
As horas rapidamente passavam. 

Chegou a Girleide
E logo se inturmou. 
Em seguida veio o Mateus
A turma se alegrou.

O que é felicidade?
O que você faz pra ser feliz?
No que pauta tuas escolhas?
Para onde aponta o teu nariz?

- Lá vem o professor.
Girleide reclamava de lá. 
Maria Aparecida respondia:
- Eu sei lá. 

Eu apenas sorria e dizia:
- quem terminar vai embora.
Desafio aceitou
Yuri terminava na hora.

Para completar a turma
Chegou a Andressa e o Gabriel. 
Ela quase não vinha
Ele sempre fiel.

Era uma turma pequena 
Mas grande em ambição. 
A força de vontade
Supera qualquer limitação. 

Quem ousaria dizer
Que não iriam conseguir? 
Para aqueles que duvidavam
Agora terão que engolir. 

Maria Aparecida, Yuri, Ketlem  
E Gabriel. 
Mateus, Andressa, Girleide, João 
O limite é o céu. 

O professor orgulhoso 
Vê seus alunos partir. 
Em busca dos seus projetos de vida 
Sei que irão conseguir. 

Pedro Ferreira Nunes - Casa da Maria Lúcia. Lajeado - TO. Lua Crescente. Verão de 2023.

domingo, 25 de junho de 2023

Leituras: Coletânea Simplesmente Amor...

Falar sobre o amor foi o desafio lançado por mais uma edição de uma obra literária organizada pelo Projeto Apparere. Desse desafio nasceu a coletânea simplesmente amor que apresenta trabalhos de autores, de diversos lugares, sobre a temática proposta. O resultado é uma obra de qualidade – que diverte, emociona, inspira e nos faz pensar.

Simplesmente amor é uma obra plural, não apenas por ser composta de trabalho de diferentes autores. Mas também no que se refere a ótica acerca da temática trabalhada bem como a forma de expressa-lá – crônicas, contos, poemas entre outros. Ou seja, alguns autores utilizam a ficção para apresentar sua visão do que é o amor. Já outros a própria vivência. Em alguns casos, ou talvez em todos, isso se mistura (ficção e realidade) sendo impossível distinguir. Ao final da leitura me pareceu que mais do que o amor, os textos falam sobre a vida. 

Mais adiante voltaremos a esse ponto. Antes falemos de como está organizada a  coletânea.

A obra é composta por 126 textos, cada 1 de um autor diferente (olha o tamanho da diversidade), formando um total de 259 páginas. E os trabalhos seguem a ordem alfabética do nome dos escritores. Essa disposição dos textos creio que possibilita uma leitura mais agradável da obra. Por que vai intercalando prosa com verso. Texto ficcional com não ficcional. E texto mais curtos, com outros mais longos. A edição é da editora Perse (de muita qualidade). E mais uma vez vale a pena chamar atenção para a capa do M.A Thompson. Os interessados podem adquirir o trabalho pelo site do Projeto Apparere.

É uma coletânea de fato recheada de bons trabalhos. Sendo difícil portanto selecionar os melhores. Ouso, no entanto, mencionar alguns que mais me afetaram durante a leitura. Nesse sentido aponto o texto que abre o livro – o conto “cem dias de solidão”, do Adenildo Aquino – escritor potiguar, radicado no Recife. 

Abro um parêntese para dizer que no final da obra há uma breve biografia de cada autor. Isso é muito importante para quem quiser conhecer mais os autores e buscar mais informações sobre aqueles que mais chama atenção do leitor. 

Outros contos que vale a pena o destaque são: “Por entre trilhos” da Ana Priscila Freire Batista, “Imperfeitos” da Antonella Nicolino, “A cafeteira que produz sonhos e amor” da Diana Paula Sousa, “Amor amargo amor” da Nádia Coldebella e  “A peça por trás da peça” do Roberto Schima. 

“Amar é um ato de coragem” – uma prosa reflexiva da Karoliny Mesquita de Oliveira é bastante interessante. Nessa mesma linha também segue “o que é o amor?” da escritora paulista Kate Roda. “A vida sem ela” é uma crônica desse que vos escreve (que modéstia a parte não deixa cair o nivel da obra, pelo contrário). E entre os poemas temos: “Hino ao amor eterno (compromisso)” do Carlos Alberto Affonso, “Perdoa-me” do João Gomes Andre e “Você procura o amor?” da Sandra Costa.

Na maioria dos textos temos uma visão romântica do amor – o que não poderia ser diferente. Pois estamos falando de uma obra literária. Nesse sentido o amor ao invés de um afeto, acaba sendo personificado numa pessoa. Nesse sentido alcançar o amor significa conquistar a pessoa amada. Ao caminhar nessa perspectiva creio que falhamos ao tratar do amor. Eu particularmente tenho tentado encara-lo de uma perspectiva mais racional, sobretudo a visão espinosana que define o amor como uma alegria relacionada a uma causa externa – e que aumenta a nossa potência de agir. Seguindo essa perspectiva não conquistamos o amor, somos afetados por ele. Desse modo não estamos falando de algo que se possuí. 

Por isso na minha visão os textos da coletânea simplesmente amor falam mais sobre relacionamentos, sobre a vida. Pois afinal de conta o que é a vida se não o que os autores nos apresentam nas suas crônicas, contos e poemas – encontros e desencontros. Chegadas e partidas. Aventuras e desventuras. Começos e fins. Alegrias e tristezas. E por aí em diante.

Simplesmente amor, poderia melhor ser defendido como “así es la vida”. De todo modo é uma obra que não decepciona os amantes da leitura. E nos mostra que tem muitos talentos fazendo literatura de qualidade nesse nosso país. Ainda que a falta de apoio e de reconhecimento persistam. Sobretudo para quem não faz parte do cânone literário brasileiro.

Pedro Ferreira Nunes – Um rapaz latino-americano que gosta de ler, escrever, correr e ouvir Rock in roll. 

terça-feira, 20 de junho de 2023

Um relato sobre os desafios do Ensino de Filosofia no contextual atual

Como trabalhar o ensino de Filosofia na educação básica num contexto de mudanças na educação caracterizado pela redução do espaço das ciências humanas na grade curricular de ensino com a implantação do Novo Ensino Médio? Esse desafio se torna ainda maior quando trabalhamos numa escola (pública) periférica localizada no interior do Tocantins. Esse é o nosso caso – atuando no Colégio Estadual Nossa Senhora da Providência em Lajeado. Nesse contexto, acreditamos que é fundamental pensar o ensino de filosofia a partir de uma perspectiva filosófica. E foi isso que fizemos instigado pelas discussões proporcionadas pela disciplina Filosofia do Ensino de Filosofia do PROF-FILO.

A minha trajetória enquanto docente é um tanto recente. Me graduei em 2019 e comecei a atuar na educação básica em 2020. No entanto, com duas semanas de sala de aula fomos surpreendidos com a suspensão das aulas presenciais como medida necessária para contenção da pandemia de COVID-19. A partir daí tivemos que encarar durante dois anos o ensino remoto e híbrido - um período marcado por muita dificuldade na relação entre professor e aluno – a meu ver, fundamental no ensino de Filosofia. Fizemos o que foi possível, dentro das condições que tínhamos, para que o estudante pudesse minimamente manter o vínculo com a escola e não abrir mão de uma formação escolar. Em 2022, retornamos de forma 100% presencial, num contexto bastante desafiador. Do ponto de vista pessoal tinha a questão da minha pouca experiência de sala de aula. De outro lado, teríamos pela frente o início da implantação do Novo Ensino Médio e também o desafio de enfrentar o déficit de aprendizagem da pandemia – que certamente seria mais grave em português e Matemática, mas que afetaria no desenvolvimento do ensino de Filosofia.

Nesse contexto ter ingressado no Mestrado Profissional de Filosofia (PROF-FILO) foi muito importante pois me proporcionou a pensar minha prática docente enquanto professor de Filosofia. E a partir daí encontrar respostas para os desafios do cotidiano. Assim temos feito. E creio que o resultado tem sido positivo. A visão da comunidade escolar acerca do ensino de filosofia tem mudado – o engajamento dos estudantes nas aulas e o nosso espaço nos projetos também. A partir da nossa orientação três estudantes conseguiram um resultado de destaque num concurso nacional de redação com a temática dos direitos humanos e a questão do idoso na nossa sociedade – o que mostrou o potencial da filosofia para além das aulas desse componente curricular.

Aparentemente pode parecer que estou fugindo do proposito desse trabalho. Que é escrever um memorial da disciplina Filosofia do Ensino de Filosofia, destacando filósofas e filósofos que me chamaram atenção bem como as temáticas trabalhadas. Mas creio que não. Uma das questões fundamentais que as aulas me suscitaram foi pensar a minha prática docente. Daí creio ser fundamental fazer essa retomada da minha trajetória e dos desafios enfrentados como também dos avanços obtidos.

Outro ponto importante das aulas, sobretudo as trabalhadas pelo Professor Lucas Faustino, foi a retomada histórica da constituição do Ensino de Filosofia no Brasil e os seus desafios sobretudo a partir de 2014 onde vimos a ascensão da extrema direita ao poder. Desse modo, além de instigar uma reflexão acerca da nossa prática docente também nos levou a entender o Ensino de Filosofia como uma trincheira de resistência ao projeto de dominação - como diria os marcusianos, através da racionalidade tecnológica.

Como resistir a esse processo? Por meio do pensamento crítico. Desse modo, o ensino de Filosofia deve promover esse pensamento a partir de diferentes pensadores. E como isso se dá? O professor Lucas Faustino nos propôs pensar a Filosofia como um canteiro de obra. Na minha prática docente busquei utilizar o termo: laboratório experimental. Por que acredito que foi isso que fizemos ao longo de 2022 – transformamos a sala de aula num laboratório experimental onde observávamos o que funcionava ou não. E a partir daí buscávamos desenvolver os objetos de conhecimento divididos da seguinte forma:

No 1° bimestre a temática seria o conhecimento, trabalhando na 1ª série a filosofia antiga e medieval e na 2ª série a moderna e contemporânea. No 2° bimestre a temática seria a política, trabalhando na 1ª série a filosofia antiga e medieval e na 2ª série a moderna e contemporânea. No 3° bimestre a temática seria a ética, trabalhando na1ª série a filosofia antiga e medieval e na 2ª série a moderna e contemporânea. E por fim, no 4ª bimestre a temática seria a ciências, trabalhando na 1ª série a filosofia antiga e medieval e na 2ª série a moderna e contemporânea.

Observamos que a estratégia de definir um objeto de conhecimento por bimestre foi bastante acertada e nos permitiu aprofundá-lo mais. Isso foi ressaltado inclusive pelos estudantes que relataram a dificuldade em outros componentes curriculares onde se trabalha muito objetos de conhecimento de forma superficial. Nós sabemos que a filosofia abrange uma infinidade de objetos de conhecimento. Sendo impossível trabalhar todos em três anos do ensino médio com uma aula por semana (quando não tem um feriado, um recesso ou culminância de um projeto). De modo que o caminho que assumimos foi o de reconhecer essa impossibilidade e a partir daí fazer um recorte daquilo que acreditamos ser fundamental numa formação básica.

Na 3ª série do ensino médio pegamos um caminho diferente. Após uma aula de introdução a filosofia onde utilizamos o texto “Quem tem medo de Filosofia” do Valerio Rohden. Dividimos os estudantes em grupos e pedimos que eles discutissem e escolhessem três temáticas que eles gostariam de ver nas aulas de Filosofia. A partir daí todas as aulas de filosofia foram planejadas em cima das temáticas propostas pelos estudantes, entre essas temáticas destacamos: violência contra a mulher, direitos humanos, discriminação racial, desigualdade e liberdade.

Pensando o ensino de Filosofia como um canteiro de obras, o professor Lucas Faustino nos mostrou que precisamos seguir algumas etapas. Ora, quando você vai construir uma casa não começa do telhado, não é mesmo?! Aí que entra a questão da metodologia. Na minha prática docente assumi como metodologia a problematização. E aqui ressaltamos as aulas da Professora Solange Campos Costa, sobretudo acerca de uma pensadora que passou a fazer parte do meu hall de referências.

Antes de falar dessa pensadora é importante enfatizarmos o quanto a presença das mulheres é negligenciada no Ensino de Filosofia. Daí a importância de disciplinas que fazem esse resgate.

Nas aulas da professora Solange também compreendi o ensino de filosofia como resistência, mas a partir de uma perspectiva feminina. Todas as pensadoras que nos foi apresentada tem a sua relevância, mas confesso ter me simpatizado mais com a bell hooks. Ainda mais depois que a professora Solange nos mostrou a relação dela com o pensamento do Paulo Freire. Digo isso não pelo fato de que seria necessário existir essa relação, mas porque tenho um certo domínio da metodologia freiriana. E isso contribuiu para que houvesse da minha parte uma maior assimilação da perspectiva educacional proposta pela hooks.

Creio que essa pensadora foi fundamental para que eu pensasse nessa ideia da sala de aula como um laboratório experimental. Em uma das suas falas sobre a sala de aula bell hooks nos diz que mesmo com suas limitações, esse espaço está cheio de possibilidades. E nesse campo de possibilidades “temos a oportunidade de trabalhar para a liberdade”. Para tanto precisamos abrir a mente e o coração para podermos enfrentar a realidade – uma realidade muitas vezes intragável para quem mora no interior do interior do Brasil – para quem tem como horizonte terminar o ensino médio e vender sua força de trabalho num emprego precário.

Parece um tanto utópico falar em liberdade numa sociedade em que os indivíduos são forçados a se comportar e agir de determinada forma. Nesse sentido, vemos surgir componentes curriculares como o Projeto de Vida – que segue justamente numa perspectiva de formação acrítica - de preparar corpos doceis para o mercado de trabalho.

Mas é justamente nesse contexto que o ensino de Filosofia se impõe como resistência. E como prática da liberdade. Não podemos perder de vista essa questão. Para tanto devemos usar mão de diferentes possibilidades, mas sobretudo a leitura e a escrita, como meios para formação de uma consciência crítica.

Na nossa experiência em sala de aula avançamos muito nesse sentido. Inclusive no componente curricular de Projeto de Vida, onde buscamos fazer uma articulação com a filosofia trabalhando Paulo Freire, bell hooks, Platão, Espinoza, Sartre entre outros. Buscamos fugir das aulas meramente expositivas, ainda que tenham sido necessárias, sobretudo no momento de trabalhar os conceitos. E nesse sentido a escrita foi importante, porque percebi que eles tinham dificuldade em falar, em se expressar. E nos exercícios de escrita eles se soltavam mais sobretudo quando a questão era o conhecimento de si. Já em relação a leitura buscamos ir para além dos manuais e ler os próprios filósofos e filósofas. Também buscamos trabalhar obras literárias a partir de uma perspectiva filosófica como por exemplo o romance O cortiço do Aluízio Azevedo entre outros.

Enfim, acredito que mesmo num contexto adverso o ensino de Filosofia tem mostrado sua força. Aqueles que tentaram tirá-lo da grade curricular da educação básica acabaram contribuindo para que ocorresse o contrário. No entanto precisamos continuar atentos e com o espirito de bell hooks e tantos outros fazendo da sala de aula um espaço de possibilidade de formação para liberdade.

*Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. Atua como Professor da Educação Básica no CENSP-LAJEADO. 


quinta-feira, 15 de junho de 2023

O homem que enganou “os home”

Em memória do Sidney, o famoso Quati Branco


Pescar por essas bandas é sempre uma grande aventura. E o Quati branco bem sabe disso pois nasceu e cresceu nas barrancas do rio Tocantins pescando e correndo dos home. De modo que aprendeu cedo com o seu pai a arte de pescar e de cair no braqueara quando necessário. 

Se a vida não era fácil para quem só tinha a pesca como fonte de subsistência em Lajeado, com a construção da usina hidrelétrica as coisas tiveram uma piora considerável. Conseguir um bom pescado por essas bandas estava mais difícil que tirar leite de onça. Só mesmo se arriscando na área proibida para pesca podia se conseguir um jaú, uma caranha, um barbado e com muita sorte até um fiote.

Sempre se corria o risco de dar de cara com os home. E com eles não tinha conversa – era tortura psicológica, cacetete nos lombos e um passeio não muito agradável até a cadeia pública de Miracema. 

É certo que não ficariam muito tempo atrás das grades, logo estariam novamente na cidade e logo estariam novamente nas barrancas do rio atrás de um bom pescado. Mas se pudessem evitar cair na mão dos home, evitavam. O problema é quando começavam beber cachaça – algo não muito raro – Perdiam a noção do perigo e iam até o inferno se necessário atrás de um jaú.

Ninguém melhor que o Quati Branco conhecia cada loca de pedra daquele rio. Por tanto quem quisesse ter uma melhor sorte na pescaria era bom tê-lo como guia. Para convencê-lo não havia argumento melhor que um litro de cachaça – seu alimento preferido. E foi assim que conseguiram lhe convencer a ir naquela noite para o rio. 

Era madrugada, ventava um vento frio de congelar a alma, no céu uma linda lua desfilava sua beleza. As muriçocas haviam dado uma trégua. Eles dormiam sob o lajeiro, enquanto o momento certo de agir não chegava. O que eles não contavam é que seriam surpreendidos pelos home.

- Acorda bando de vagabundos!!! Vocês não sabem que é proibido pescar aqui? Cadê os peixes? 

- A gente num pego nada não. 

- Tá com conversa seus meliantes. Eu conheço vocês. 

- É verdade seu puliça. A gente tava esperando a lua sumir.

- E as tralhas de pesca de vocês? Pode passar tudo.

- Só tem essas.

- E a tarrafa? E as redes?

- Só tem isso ai.

- Conversa. Então tá na hora de tomar um banho para tirar essa inhaca de cachaça do corpo.

O Quati Branco conhecia bem aquele ritual. E logo pensou consigo: – pronto, vai começar de novo. Tomar banho nessa água fria, nesse frio desgraçado, com roupa e tudo às 3h da madruga ninguém merece.

- Fica um ao lado do outro. E quando eu mandar um de cada vez vai dá um mergulho e sai para fora. Tá entendido?

- Sim, senhor.

- Eu não ouvi.

- Sim, senhor!!!

- Melhorou.

Os soldados que acompanhavam o comandante se divertiam com a cena dando ótimas risadas. Já o comandante mantinha uma certa seriedade. A alegria dos soldados aumentou mais ainda quando o primeiro pescador caiu na água – a cara de dor do pobre ao mergulhar naquela água fria em plena madrugada foi como se alguém tivesse feito cócegas nos soldados. Nem mesmo o comandante conseguiu segurar o riso.

- Agora o próximo. 

E a cena se repetiu – os soldados e o comandante caindo na risada diante do sofrimento dos pobres diabos. Chega então a vez do Quati Branco. Ele bem sabia que o pior não era nem tanto entrar na água fria, o problema era na hora de sair. Ai sim o frio apertava como se fosse o abraço da morte.

- Vamos, o que tá esperando seu vagabundo?! Cai na água já. Gritou o comandante no pé do ouvido do Quati Branco. 

O Quati Branco tomou bem o fôlego e mergulhou. Mas ao contrário dos anteriores não voltou. 

- Uai, cadê ele? Será que morreu? Comentou o Comandante com os demais. E em seguida começaram a gritar pelo desgraçado. Mas não obtiveram resposta.

Há uns bons metros dali o Quati surgia tranquilamente. Ele planejara bem aquela ação. Enquanto os soldados e o comandante sorriam dos seus companheiros que eram obrigados a mergulhar com roupa e tudo na água fria – Ele matutava consigo mesmo: - Eu mergulho, seguro o fôlego e nado por dentro d'água o mais longe que eu puder. Saiu lá na frente, nessa escuridão não irão me ver, e se me verem caio no braqueara e eles não me pegam nem com o diabo.

Dito e feito. O plano do Quati funcionou perfeitamente. Naquela noite ele não faria o papel de bobô daqueles imbecis fardados que achavam ter o rei na barriga – que se divertiam torturando pobre diabos enquanto suas mulheres se divertiam com os amantes. Naquela noite o Quati Branco se tornou o homem que fez de bobô “os home”, isso ele já mais esqueceria. Nem ele e nem ninguém por essas bandas.

Por Pedro Ferreira Nunes – um rapaz latino americano que gosta de ler, escrever, correr e ouvir Rock in roll.