terça-feira, 5 de setembro de 2023

Nos corredores do HGP

Algum dia do mês de Julho de 2021 - a mim  me pareceu que não tinha mais de 18 anos. Mas confesso que não sou muito bom em fisionomias. Na situação em que estávamos – no corredor de um hospital público – há uma aproximação maior, ainda que não queiramos. Eu acompanhando minha mãe. Ela em observação – mais tarde descobriria que era devido uma depressão severa que havia feito tentar o suicídio. 

Vendo aquele cenário triste, pensei comigo: - Se as pessoas fossem um pouco mais inteligentes agiriam de forma a evitar que um dia pudessem cair num lugar desses. Mas infelizmente não é bem assim. Por isso o negócio da saúde é tão lucrativo na nossa sociedade. Lembrei do Rousseau e a crítica que ele faz aos médicos. Lembrei também de um poema de Dom Pedro Calsadaglia criticando a mercantilização da saúde. Se estivéssemos pagando certamente não estaríamos naquela situação. O que é lamentável, pois todos deveríamos ter acesso a um sistema de saúde  pública de qualidade. 

A noite seria longa. Sem leitos disponíveis tínhamos que nos conformar com as cadeiras do corredor. Para fazer com que aquelas horas fossem mais tragáveis possíveis melhor era estabelecer uma relação de cooperação entre nós. E isso não foi nenhum pouco difícil. Parece que há uma espécie de união natural na dor. Foi nesse contexto que conheci aquela menina e um pouco de sua história de vida. 

De início ela parecia um pouco tímida. Já eu estava super ambientado (com minha boina na cabeça e uma bandana no rosto estilo soldado do EZLN, que “pouco” chama atenção) ajudando no que era possível aqueles que estavam mais necessitados que nós. 

Vi que havia uma cadeira vazia. E como ela estava em pé ao meu lado falei para sentar. Inicialmente ela disse que não, mas depois sentou. Talvez a minha iniciativa, demonstrando preocupação e cuidado, fez ela me ver com outros olhos. Já num segundo momento a iniciativa partiu dela. O motivo da conversa – minhas tatuagens. 

A partir dali ela foi se abrindo comigo. Logo confessou que gostava de meninas. Disse que achava homens negros lindos. E não via problemas gostar de meninas e achar os homens lindos – ainda que não sentisse atração por eles. Algumas senhoras ficaram horrorizados com aquela declaração. Eu sorri. Gostei da atitude dela. Ela então percebeu em mim alguém que não a julgava por ser quem era ela. E então nossa amizade se fortaleceu.

Algo naquela menina solitária me atraia. E eu quis saber mais sobre ela. E como cada vez mais ela me dava intimidade para pergunta-la eu o fiz. Por que ela estava ali? Qual era o seu problema? Já que aparentemente ela era perfeita. Ela não fez rodeios: - eu tentei suicídio, me mutilo há muitos anos. E me mostrou tanto nos pulsos como nas costas as marcas. E o que teria ocasionado isso? O pé na bunda de uma namorada? Eu quis saber. Ela disse: - A morte de minha mãe. Fiquei sem palavras. 

O que dizer para alguém que quer tirar a própria vida? O que fazer para que ela pense diferente? Da minha parte nada. Só me restava o silêncio. Eu não tinha como sentir a dor dela. De modo que qualquer coisa que eu falasse seria deslocado da realidade. E para fazer discurso vazio era melhor o silêncio. Talvez o meu silêncio demonstrasse mais respeito com sua dor do que tentar empurrar algum discurso vazio para convencê-la do contrário. 

Já o setor de psiquiatria do hospital seguia o caminho dos antidepressivos. Até quando resolveriam? Quem sabe.

Nas horas que passamos juntos ao invés de julga-la, busquei demonstrar compreensão. Ao invés de critica-la lhe apoiei. Do meio para o fim ela já estava planejando uma festa onde eu seria o convidado especial. – vai dá certo, respondi sorrindo. Ela me pediu um abraço. Ultimamente isso tem sido quase um mantra para mim. Ainda que tenho consciência que nem sempre vai dá certo. Mas tudo bem, por que a vida é assim. E assim como defendia Platão e Aristóteles devemos aprender isso desde cedo.

Não sei o que aconteceu com ela depois daquela noite. Sei que ela foi para casa um pouco melhor do que chegou ali. Espero que ela possa encontrar o apoio afetivo tão necessário para que possa vencer essa doença que lhe faz atentar contra a própria vida (ao contrário do que alguns ainda pensam, depressão é doença sim. E tem levado muito dos nossos jovens). 

Que nos seus episódios de crise mais aguda ela possa se lembrar daquele momento que foi tirar sangue e me pediu para acompanha-la. Vendo o seu nevorsimo lhe estendi a mão e ela agarrou firmemente. Ela então viu que não estava sozinha e venceu o medo. 

Por Pedro Ferreira Nunes – um rapaz latino-americano que gosta de ler, escrever, correr e ouvir Rock in Roll. 


quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Projeto de Vida: trabalhando a empatia e cooperação a partir da leitura de “Quando meu pai perdeu o emprego”

Uma das competências que buscamos desenvolver no processo de ensino-aprendizagem a partir da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é a empatia e cooperação. No componente curricular de Projeto de Vida, nos anos finais do Ensino Fundamental, buscamos trabalha-lá a partir da literatura. Nesse contexto uma das obras utilizada foi o romance “Quando meu pai perdeu o emprego” do Wagner Costa.

A estória nos trás uma realidade que não é muito distante da maioria dos nossos estudantes que são oriundos de famílias da classe trabalhadora. O que contribui para que as questões propostas sejam melhor assimiladas. Por exemplo, o fato de que a perda do emprego além da questão econômica e social, trás também o aspecto emocional. É o que percebermos no decorrer da narrativa que mostra os conflitos entre os personagens diante de uma situação que exige sacrifício e maturidade ou melhor, empatia e cooperação. 

Imagina uma família de classe média composta por – marido, esposa e quatro filhos – duas crianças e dois adolescentes. Nessa família apenas o marido trabalha. No entanto o seu salário consegue proporcionar um bom padrão de vida a todos. Certo dia porém ele será demitido e essa demissão irá colocar a prova a unidade familiar para superar a crise que irá se instalar no ambiente doméstico.

Entre os personagens destacamos os dois filhos (Pedro Paulo ou Pepê e o Beto), sobretudo por que eles apresentaram comportamento diverso diante da nova situação. De um lado veremos um tentando se colocar no lugar dos outros – buscando diálogo e cooperando para superar as dificuldades, inclusive procurando um emprego para ajudar no orçamento familiar. Do outro lado temos o oposto – um comportamento egoísta, que fica buscando culpados, fugindo da realidade, que prefere bater boca que dialogar, que tenta sabotar ao invés de cooperar.

Durante a leitura os estudantes foram instigados  a refletir sobre tais comportamentos. Para tanto elaboramos algumas questões norteadoras como por exemplo: O que aconteceu quando o pai perdeu o emprego? Qual o personagem que você se identifica e por que? Descreva um trecho que houve um comportamento empático? Descreva um trecho que houve cooperação? O que mais ti afetou na estória e por que? 

Um aspecto importante a se ressaltar é que antes da leitura havíamos trabalhado conceitualmente o que é empatia e cooperação. E durante e posteriormente a leitura buscamos aprofundar essa compreensão introduzindo também a questão do diálogo – a partir da concepção de Paulo Freire. 

Por falar em Paulo Freire, além da empatia e da cooperação, em “Quando meu pai perdeu o emprego” temos um conceito freriano muito importante – a esperança. Aliás o ponto de partida do romance é justamente uma mensagem de esperança deixada pelo avô (pai do pai) de que se houvesse união e cooperação certamente a família iria superar aquela jornada. Podemos dizer assim, que a esperança ressaltada pelo autor segue a linha defendida por Paulo Freire, isto é, esperança do verbo esperançar – ou seja, é preciso agir para que as coisas aconteçam. 

O livro foi trabalhado nos anos finais do ensino fundamental. No entanto, observamos que  foi melhor assimilado pelas turmas do 8° e 9° Ano. A recepção da obra pelos alunos e o engajamento deles durante a leitura foi algo bastante significativo – que nos mostrou ter sido um acerto a escolha do livro. É importante também ressaltar a escrita do Wagner Costa – acessível e envolvente. E o fundamental, a estória é narrada em primeira pessoa, isto é, quem nos conta o fato é o Pepê. Desse modo, o autor fez o exercício de se colocar no lugar de um jovem, pela recepção dos nossos estudantes conseguiu se conectar com eles.

Enfim, com esse exercício de trabalhar a empatia e cooperação a partir da literatura, seguimos uma estratégia defendida por nós a partir de autores como os filósofos  Lipman e Norman. Óbvio, trazendo para nossa realidade – eis ai um aspecto fundamental que garantiu que o trabalho proposto fosse exitoso. Por tanto é importante planejar o que se quer trabalhar e a partir daí escolher uma obra literária que minimamente dialoga com o contexto que o estudante está inserido. E posteriormente avaliar se os objetivos foram alcançados. 

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. Atua como Professor da Educação Básica no CENSP-LAJEADO.


sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Um poema para quem Partiu

 


Descansa

Descansa, minha querida 
a sua hora chegou.
Cumpriste a tua sinal
Fostes exemplo de amor.

Não temas pelos teus filhos
saberão se virar.
Preservaram tua memória 
esquecida não será. 

Aos teus amigos 
deixarás ternas saudades.
Ninguém poderá negar
que fostes uma amiga de verdade.

Cumpriste a sua sina
o melhor que poderia.
Se alguma vez falhaste 
não foi por que queria. 

Descansa, minha querida  
a sua hora chegou.
Cumpriste a tua sinal
fostes exemplo de amor.

Pedro Ferreira Nunes – Casa da Maria Lúcia. Lajeado-TO.




domingo, 20 de agosto de 2023

Ensaio: A conversa

Por mais que John tentasse afastar-se de Luna, não conseguia. Quando ela surgia diante dele tudo que ele havia planejado para resistir á sedução dela ia por água abaixo. Para John tal relação era muito próxima da que um viciado tem com a cocaína ou outra droga qualquer – alguns minutos de prazer extremo e o resto do tempo de profunda depressão. O relacionamento com Luna terminantemente não fazia bem para John. Ela era uma droga pela qual ele era extremamente viciado. E por mais que ele tentasse superar este viciou, não estava conseguindo. Quando ele conheceu Suzy, e no auge de sua relação com ela chegou a pensar que Luna não fazia mais parte da sua vida, no entanto ele estava redondamente enganado – ele podia conhecer muitas mulheres, apaixonar-se por elas, mas era Luna a única com o poder de fazê-lo fazer coisas que ele não queria.

Muitas vezes John agia de forma dura com a Luna, tratava-a friamente. No entanto ela sabia que aquilo tudo era apenas da boca pra fora. Que quando ele se rendia mostrava-se o amante sensacional que era. Uma pessoa carinhosa e amorosa, inteligente, amigo e companheiro inseparável. John era uma das raras pessoas naquele lugar com quem você podia ter uma ótima conversa. Era um sonhador, o que não podia ser diferente sendo o aspirante a poeta que era. E o seu jeito diferente de ser fazia dele uma ótima companhia para todos ali. Quando Luna estava se sentindo sozinha, precisando de alguém que de fato lhe desse carinho, e não apenas pau como os outros caras com quem ela se relacionava. Não pensava duas vezes corria para os braços de John, pois ele era seu porto seguro. Onde podia se atracar com segurança após as aventuras que vivia.

- Preciso conversar contigo John.

- Quando?

- Agora, pode ser?

- Sim. Mas é só conversar mesmo né?

- Vamos para um lugar mais tranquilo.

- Ok.

John estava com seus amigos tocando violão, tomando cachaça e fumando tabaco. Era assim que eles passavam as frias noites lajeadense. Como também pensando em planos mirabolantes para mudar a cidade, planos que já mais sairiam do papel. Depois que Suzy decidiu afastar-se dele, ele também não pretendia reatar seu romance com Luna. Mas não quis resistir a conversar com ela. Mesmo imaginando o que Luna queria com ele.

- E então, como você esta? Dá ultima vez que nos falamos você me tratou tão mal, não quis nem conversa comigo.

- Eu ti tratei mal? Ora você some, depois aparece, dai diz que quer ficar comigo, depois me manda ir se ferrar, diz que sou ruim de cama. E ai fui eu que ti tratei mal?

- Ah, John você sabe que falei tudo aquilo só da boca pra fora. Só pra ti provocar por que você me tratou com a maior frieza, aliás, é assim que você tem me tratado ultimamente. E não sei o porquê disso. Já que a gente se gosta tanto.

- Você insiste numa estória que já deu o que tinha que dá. Por que não aceitarmos que o nosso relacionamento não tem futuro. Que ultimamente a gente só tem se magoado. Que a nossa paixão já não é mais como antes.

- Será mesmo? Acho que você só está falando isso da boca pra fora. Você é louco por mim que sei, eu sou louca por ti, pode não parecer, mas sou sim. A gente se dá tão bem quando você tira essa mascara de durão que não tem nada a ver contigo.

- A gente não dá mais certo como namorado. Não vou dizer que não é bom ficar contigo. O problema é depois quando você vai embora. Quando fico sozinho morrendo de saudades suas e você por ai com outros.

- John amor a dois sufoca. Nos lembremos dos ensinamentos do Raul – se eu ti amo e tu me amas, um amor a dois profana, o amor de todos os mortais... Às vezes a gente precisa dá um tempo um do outro para viver novas experiências com outras pessoas. O importante é quando a gente se reencontra a chama da nossa paixão reacende bem maior que antes. E também eu nunca ti proibi de ficar com outras, desde que não seja nada sério. Desde que você volte para mim.

- Eu não consigo viver assim Luna. E mesmo gostando de ti, eu prefiro abrir mão desse amor a viver em um relacionamento que não me faz bem. E quando em um relacionamento um dos dois não está contente é melhor terminar... Antes que vire ódio.

- Então o que você quer é ser o meu dono? Ter exclusividade sobre mim?

- Não, não estou ti pedindo isso.

- Ora como não. Isso que é um relacionamento tradicional.

- Eu não estou propondo uma relação de posse, mas sim de cumplicidade. Mas vejo que isso é impossível entre nós.

- Ok. John. A partir de hoje serei apenas sua. Vamos morar juntos, nos casar e ter filhos. Que tal?

- Não é assim não. As coisas não funcionam assim de uma hora para outra.

- Como não? Não é isso que você quer?

- Mas não assim do dia pra noite. A gente precisa estabelecer um processo de confiança entre nós.

- Você não confia em mim?

- Você tem me dado algum motivo para que eu ti dê confiança?

- Para ficarmos juntos temos que esquecer o que passou.

- Isso não. Temos que aprender com o passado, já que não podemos apaga-lo.

- Tá certo.

- E também você não pode prometer o que não pode cumprir;

- Então o que você quer?

John não soube responder a Luna. O fato é que ele já não sabia o que queria com ela.

Por Pedro Ferreira Nunes - Apenas um rapaz latino americano que gosta de ler, escrever, correr e ouvir Rock in roll. 

terça-feira, 15 de agosto de 2023

Como saber se a cidade está realmente num bom caminho?!

Para saber se uma cidade está realmente num bom caminho devemos nos questionar como anda a política educacional. É a partir dessa que podemos vislumbrar mudanças qualitativa em relação às expressões da  questão social que afetam a municipalidade – como por exemplo, a baixa escolaridade, o desemprego, a pobreza, a violência, tráfico e consumo de drogas, e a gravidez na adolescência. Diante disso, se não vemos nenhuma ação da gestão municipal no sentido de garantir valorização e qualificação para os profissionais da educação, melhoria estrutural das escolas e políticas de acesso e permanência dos estudantes, não podemos dizer que a cidade está num bom caminho.

Esse pensamento me veio a cabeça durante uma busca ativa realizada para formação de turmas da educação de jovens e adultos (EJA). Num primeiro momento fiquei feliz com a quantidade de pessoas que encontramos, apenas num setor da cidade, com a educação básica incompleta. Depois fiquei triste, pois uma cidade não pode estar num bom caminho com tanta gente assim fora da escola. Fico me perguntando se os agentes públicos locais estão realmente preocupados com a municipalidade. Não vejo nenhuma manifestação, seja da situação ou oposição, acerca desse problema – que se não é, deveria ser de conhecimento de todos. E assim, essa expressão da questão social vai sendo naturalizada. E a partir daí vai se criando uma  cultura em que estudar é desnecessário.

Podemos sentir isso inclusive na educação das crianças e adolescentes que frequentam a escola e demonstram uma grande dose de apatia em sala de aula. O exemplo que esses jovens tem, muitas vezes em casa, é do estudo como algo supérfluo. Ou seja, de algo do qual se pode abrir mão. Acreditam no canto da sereia que vende uma vida de sucesso como jogador de futebol ou influencer. Quando menos perceberem estarão presos num trabalho precarizado onde ganham o mínimo para subsistência. Repetindo assim um círculo de fracasso familiar.

Para que essa realidade mude a educação precisa ser encarada como um problema de toda a sociedade. Estamos falando de uma questão muito séria para ser deixada apenas nas mãos dos agentes públicos. Desse modo é fundamental que as pessoas participe efetivamente das discussões e deliberações acerca das políticas educacionais do município. 

Essa participação parece um tanto distante, sobretudo quando se percebe que parte significativa das famílias não acompanha efetivamente  a vida escolar dos filhos. E se não estão preocupados com a educação dos próprios filhos, imagina com a política educacional do municipio – aqueles que tem condição de mandar os filhos estudarem em outras cidades menos ainda.

Apesar dessa realidade não podemos tirar do nosso horizonte a perspectiva de uma política educacional com a participação de todos. Óbvio que não temos a ilusão de que isso ocorra do dia para a noite. É necessário todo um trabalho de conscientização no sentido de mostrar que não é possível vislumbrar qualquer perspectiva de mudança qualitativa, seja interna ou externa, sem educação. 

Obras são importantes, melhoria da infraestrutura – da prestação de serviços entre outros. Pois gera emprego, aumenta o consumo e aquece a economia. Mas isso por si só não resolve. Pode até atender uma necessidade imediata por sobrevivência. Mas não resolve questões estruturais como as que pontuamos no início. Não estamos querendo dizer com isso que a educação resolve tudo. Mas certamente sem ela nada se resolve. Por isso não podemos ficar contentes com uma cidade que negligência o acesso e permanência dos seus cidadãos na escola – seja ele menor ou maior de idade.

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. 

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Jogos Estudantis do Tocantins e Ritos de passagens

Os jogos estudantis podem ser considerados ritos de passagem? A priori a minha resposta seria sim. Sobretudo depois da minha experiência recente de participação nos jogos estudantis do Tocantins (JETS), como parte da Comissão Técnica. Observar o comportamento dos alunos-atletas me fez voltar no tempo – de quando eu me encontrava na mesma posição daqueles jovens – representando a minha escola no time de futsal masculino. 

Para responder a nossa pergunta é necessário definirmos o que são ritos de passagem. 

Bem, ritos de passagem, pode ser definido como mudanças significativas que marcam nossas vidas. Por exemplo, a passagem da adolescência para vida adulta. Nesse processo de transição há um conjunto de acontecimentos que vão marcando nossas vidas. Dependendo da cultura em que estamos inseridos esses acontecimentos são vivenciados de diferentes formas. Numa análise superficia nos parece que há por trás dessa ideia a concepção filosófica de que somos seres sociais. E que por tanto nossa identidade é construída a partir das relações socioculturais.

Voltando a questão dos ritos de passagem é importante destacar que se trata de um objeto de estudo da antropologia. E tem sobretudo em autores franceses, importantes contribuições. Por exemplo, Van Gennep que no início do século XX publicou uma obra onde se dedica ao estudo desse tema propondo a seguinte divisão: ritos de separação, que seria o caso de formatura ou sepultamento; ritos de margem, como o período da gravidez ou noivado; e os ritos de agregação, como batismo ou casamento. Lévi-Strauss por sua vez aponta que os ritos de passagem tem um papel de coesão social. Ou seja, de manutenção da união do grupo. E a partir dai para uma ideia de continuidade por meio da conservação de tradições. Já Claude Rivière chama atenção para os ritos de passagem que estão presente no nosso cotidiano e que muitas vezes nem damos conta disso. Ele destaca por exemplo os ritos que há no ambiente escolar, desde a chegada, o cumprimento de horário e as atividades desenvolvidas. Para Rivière esse processo terá na adolescência a sua fase mais crítica já que é nessa fase onde o jovem sofrerá um conflito interior expressado por um comportamento muitas vezes antisocial. Romper ou continuar com as tradições familiares eis um dos principais dilemas com os quais os jovens se deparam. 

Esse dilema é representado em diferentes obras de arte, sobretudo na música popular como podemos destacar em canções como herdeiro da pampa pobre, da banda gaúcha Engenheiros dos Hawaii:

“passam às mãos da minha geração/Heranças feitas de fortunas rotas/Campos desertos que não geram pão/Onde a ganância anda de rédeas soltas./Se for preciso eu volto a ser caudilho/Por essa pampa que ficou pra trás/Por que não quero deixar pro meu filho/ A pampa pobre que herdei de meu pai”.

Bem, agora que temos mais claro o que são ritos de passagem. Vamos conhecer o que são os jogos estudantis do Tocantins  (JETS). 

O JETS nada mais é do que uma tradicional competição esportiva promovida pela Secretaria da Educação do Tocantins (SEDUC-TO). Seguindo a tradição grega fundamentada na Paidéia. Ou seja, numa formação integral dos indivíduos. Não por acaso os jogos estudantis são inspirados nas olimpíadas e mais importante do que a competição são os valores éticos promovido por meio dos jogos. Nessa perspectiva não basta demostrar talento para o esporte, o aluno-atleta tem que provar ser um indivíduo ético – que respeita as normas estabelecidas. Para tanto se faz necessário mostrar certa maturidade.

Para muitos é a primeira experiência de uma vivência longe de casa. Pela primeira vez irão conviver, ainda que por um curto período, com pessoas diferentes do seu cotidiano. E isso exige um outro nível de comportamento. Por exemplo, a submissão a regras de convivência que não existe no ambiente doméstico. O que em certa medida aponta para o que será a vida adulta.

Guardo com muito carinho a lembrança da minha participação no JETS enquanto estudante. Lembro que a nossa atuação  na competição foi um desastre. E talvez isso tenha me ajudado em certo sentido a me tocar que a carreira de atleta não era para mim. Mas a sensação de participar do evento com um grupo de colegas queridos superou qualquer fracasso e permaneceu vivo na minha memória. Agora anos depois participando como parte da comissão técnica, eu me vi em vários meninos da nossa delegação. 

Enfim, eu acredito que ao retornar a escola esse estudante que participou do JETS não será mais o mesmo. A vivência que ele teve lhe coloca num nível de amadurecimento diferente dos demais. Por isso que considero esses jogos estudantis como um rito de passagem. Ainda não estamos falando de uma passagem para a vida adulta. Mas para uma nova percepção do mundo, certamente. Sobretudo diante das derrotas. Para esse jovem o mundo já não se resumirá a sua casa, a sua escola ou a sua cidade. E quem sabe a partir dai ele não tome consciência de que conseguir um lugar de destaque nesse mundo novo exige um esforço redobrado. 

Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular, Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. E Professor da Educação Básica no CENSP Lajeado.


sábado, 5 de agosto de 2023

Hilda e Malthus – O amor como libertação

Estamos na cidade do Rio de Janeiro, em plena didatura Civil-Militar. Grupos de manifestantes tomam as ruas para protestar contra o regime político que governa o país. Quando então são reprimidos de forma violenta. No meio do tumulto que se forma acontece o reencontro de Hilda e Malthus. Eles não dizem uma palavra se quer, a troca de olhares fala por si só. De repente é como se aquela realidade fosse suspensa e os dois se teletransportassem para o passado – para cidade onde se conheceram e se apaixonaram perdidamente. Em meio as lembranças, a sentença da cartomante se impõe: “ninguém foge ao seu destino”. Eles sorriem um para o outro no melhor estilo “e viveram felizes para sempre”, e a história então acaba.

A cena descrita acima é do seriado Hilda Furacão, produzido e exibido pela Rede Globo de Televisão em 1998. Dirigida por Wolf Maya, a obra é uma adaptação do romance homônimo escrito por Roberto Drummond, feito pela Glória Perez. Trata-se, na nossa análise, de uma das melhores obras da teledramaturgia brasileira a partir de um ponto de vista estético. Sem falar das questões que a obra suscita, sobretudo no campo da moralidade. De um lado temos Hilda – uma jovem de classe média que decide deixar para trás uma vida na alta sociedade e se entregar ao meretricio. Do outro Malthus – de origem humilde e que está sendo formado para o sacerdócio. Ou seja, temos aí um embate entre o moralismo cristão, sob influência platônica, que condena as paixões da carne. E uma perspectiva Nietzscheneana, que se opõem diametralmente a qualquer freio moral fundamentado na ideia de bem ou mal.

Para entendermos melhor essa questão voltemos um pouco na história de Hilda e Malthus. Ela abandona sua casa, e o noivo no altar, e vai parar na zona boêmia. Tornando-se a prostituta mais conhecida e desejada do lugar. Ele chega do interior para morar no seminário. Como pano de fundo temos nas ruas o embate entre direita e esquerda – nos momentos que antecede o golpe civil-militar de 1964. A zona boêmia vira alvo dos setores conservadores e ninguém melhor para liderar essa marcha do que um santo – é assim que Malthus é visto – como um santo.

É a partir daí que eles tem o primeiro encontro. E esse primeiro encontro, que se dá num clima de embate entre o bem e o mal. Acaba colocando a frente dois jovens que estão numa espécie de busca de autoconhecimento – apesar de se mostrarem, sobretudo ela, cientes do que querem. No fundo são apenas dois jovens que buscam se libertar da pressão social. O amor que surgirá dessa relação acaba fortalecendo tanto um como o outro nessa luta.

Inicialmente eles tentam negar e reprimir o que sentem um pelo outro. Afinal de contas é impensável o amor entre uma prostituta e um aspirante a santo. No entanto eles descobriram que o desejo é um afeto poderoso. E frea-lo não é tarefa fácil. Como era de se esperar, a iniciativa parte dela – que tem uma cabeça mais liberal. Ele mesmo com o peso de toda uma moral religiosa nas costas acaba não resistindo. 

Para entendermos melhor o dilema de Malthus, as palavras de Nietzsche sobre a fé cristã, em Além do Bem e do Mal (2007, p. 62), é esclarecedora: “A fé cristã é, desde seus primórdios, sacrifício: sacrifício de toda independência, de toda altivez, de toda liberdade de espírito, ao mesmo tempo escravidão, auto-humilhação, automutilação”.

É nessa condição que Malthus se encontra. Desse modo, o amor por Hilda vem liberta-ló. Para ela o amor por ele também significa libertação – libertação da autopunição que ela se impõe. O fato é que no final das contas ela está submetida a moralidade cristã, tanto quanto ele.

Quando então Hilda e Malthus decidem ficar juntos – quando o desejo se impõe acima de qualquer moralidade – o desejo na perspectiva aristotélica, ou seja: como apetite do que é agradável. Acontece uma fatalidade – Malthus é preso acusado de subversão pelos militares – que acabam de dar o golpe. E Hilda parte dali acreditando que ele desistira dela.

E aqui voltamos para o nosso início. Quando parecia que a história de amor de Hilda e Malthus teria um final triste. Sobretudo para os milhões de espectadores que abraçaram os dois, passando inclusive por cima de suas concepções morais. Acontece o reencontro. E não poderia ser num lugar melhor. Numa manifestação – uma manifestação não só contra o regime político que governava o país, mas contra toda uma sociedade decadente. Desse modo a história de amor entre Hilda e Malthus se inseri no espírito daquele tempo onde setores significativos da população clamava por mudanças. Tanto ele como ela lembram que essa mudança começa dentro de nós.

Por Pedro Ferreira Nunes – um rapaz latino americano que gosta de ler, escrever, correr e ouvir Rock in roll.