Vendo aquele cenário triste, pensei comigo: - Se as pessoas fossem um pouco mais inteligentes agiriam de forma a evitar que um dia pudessem cair num lugar desses. Mas infelizmente não é bem assim. Por isso o negócio da saúde é tão lucrativo na nossa sociedade. Lembrei do Rousseau e a crítica que ele faz aos médicos. Lembrei também de um poema de Dom Pedro Calsadaglia criticando a mercantilização da saúde. Se estivéssemos pagando certamente não estaríamos naquela situação. O que é lamentável, pois todos deveríamos ter acesso a um sistema de saúde pública de qualidade.
A noite seria longa. Sem leitos disponíveis tínhamos que nos conformar com as cadeiras do corredor. Para fazer com que aquelas horas fossem mais tragáveis possíveis melhor era estabelecer uma relação de cooperação entre nós. E isso não foi nenhum pouco difícil. Parece que há uma espécie de união natural na dor. Foi nesse contexto que conheci aquela menina e um pouco de sua história de vida.
De início ela parecia um pouco tímida. Já eu estava super ambientado (com minha boina na cabeça e uma bandana no rosto estilo soldado do EZLN, que “pouco” chama atenção) ajudando no que era possível aqueles que estavam mais necessitados que nós.
Vi que havia uma cadeira vazia. E como ela estava em pé ao meu lado falei para sentar. Inicialmente ela disse que não, mas depois sentou. Talvez a minha iniciativa, demonstrando preocupação e cuidado, fez ela me ver com outros olhos. Já num segundo momento a iniciativa partiu dela. O motivo da conversa – minhas tatuagens.
A partir dali ela foi se abrindo comigo. Logo confessou que gostava de meninas. Disse que achava homens negros lindos. E não via problemas gostar de meninas e achar os homens lindos – ainda que não sentisse atração por eles. Algumas senhoras ficaram horrorizados com aquela declaração. Eu sorri. Gostei da atitude dela. Ela então percebeu em mim alguém que não a julgava por ser quem era ela. E então nossa amizade se fortaleceu.
Algo naquela menina solitária me atraia. E eu quis saber mais sobre ela. E como cada vez mais ela me dava intimidade para pergunta-la eu o fiz. Por que ela estava ali? Qual era o seu problema? Já que aparentemente ela era perfeita. Ela não fez rodeios: - eu tentei suicídio, me mutilo há muitos anos. E me mostrou tanto nos pulsos como nas costas as marcas. E o que teria ocasionado isso? O pé na bunda de uma namorada? Eu quis saber. Ela disse: - A morte de minha mãe. Fiquei sem palavras.
O que dizer para alguém que quer tirar a própria vida? O que fazer para que ela pense diferente? Da minha parte nada. Só me restava o silêncio. Eu não tinha como sentir a dor dela. De modo que qualquer coisa que eu falasse seria deslocado da realidade. E para fazer discurso vazio era melhor o silêncio. Talvez o meu silêncio demonstrasse mais respeito com sua dor do que tentar empurrar algum discurso vazio para convencê-la do contrário.
Já o setor de psiquiatria do hospital seguia o caminho dos antidepressivos. Até quando resolveriam? Quem sabe.
Nas horas que passamos juntos ao invés de julga-la, busquei demonstrar compreensão. Ao invés de critica-la lhe apoiei. Do meio para o fim ela já estava planejando uma festa onde eu seria o convidado especial. – vai dá certo, respondi sorrindo. Ela me pediu um abraço. Ultimamente isso tem sido quase um mantra para mim. Ainda que tenho consciência que nem sempre vai dá certo. Mas tudo bem, por que a vida é assim. E assim como defendia Platão e Aristóteles devemos aprender isso desde cedo.
Não sei o que aconteceu com ela depois daquela noite. Sei que ela foi para casa um pouco melhor do que chegou ali. Espero que ela possa encontrar o apoio afetivo tão necessário para que possa vencer essa doença que lhe faz atentar contra a própria vida (ao contrário do que alguns ainda pensam, depressão é doença sim. E tem levado muito dos nossos jovens).
Que nos seus episódios de crise mais aguda ela possa se lembrar daquele momento que foi tirar sangue e me pediu para acompanha-la. Vendo o seu nevorsimo lhe estendi a mão e ela agarrou firmemente. Ela então viu que não estava sozinha e venceu o medo.
Por Pedro Ferreira Nunes – um rapaz latino-americano que gosta de ler, escrever, correr e ouvir Rock in Roll.