sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Extensão Pedreira: Limites e possibilidades da educação no campo a partir de uma experiência de campo

A educação é um constante desafio, o que exige por parte dos educadores um processo contínuo de formação para tornar o processo educativo mais efetivo. No campo esse desafio é ainda maior diante dos limites que se apresentam, sobretudo no que diz respeito ao acesso a aparelhos eletrônicos e a conectividade. No entanto, com possibilidades que transcendem esses limites como veremos a partir de uma ação desenvolvida pela Extensão do Colégio Estadual Nossa Senhora da Providência na Comunidade Pedreira – Zona Rural do Município de Lajeado - que teve como finalidade conhecer formas criativas de desenvolver e utilizar a tecnologia no campo. 

 

Tecnologia no Campo 

No contexto atual falar em tecnologia no campo não é nenhuma novidade. Pelo contrário, o modelo agropecuário brasileiro tem se desenvolvido cada vez mais através do aumento da sua produção, utilizando recursos tecnológicos de ponta. No entanto, esses recursos são um tanto inacessíveis para média e pequena agricultura. De modo que a criatividade aliada ao conhecimento pode ser um fator importante para que isso seja mudado. Nesse sentido a educação ganha relevo especial, sobretudo as escolas que atendem o público campesino, seja elas no ou do campo, proporcionando experiências que desperte nos estudantes o interesse em se aprofundar nessa área.  

 

Aula de campo na Extensão Pedreira  

A extensão Pedreira do Colégio Estadual Nossa Senhora da Providência, atende estudantes nas modalidades de ensino médio e EJA-Terceiro Segmento. E funciona nas dependências da Escola Municipal JK, na Comunidade Pedreira. Atendendo estudantes que moram na zona rural – que teriam de deixar suas casas no campo para cursar o ensino médio num centro urbano mais próximo.  



Ainda que não estejamos falando de uma escola do campo, pois a grade curricular e o calendário escolar é o mesmo das escolas localizadas na zona urbana. Por sua localização ser na zona rural, os professores não poderiam deixar de levar em consideração a realidade que estes estudantes estão inseridos. É nessa perspectiva que percebemos a importância da aula-campo realizada pelos Professores: Arleth Gomes, Francisca Fontes, Liliana Cruz e Marlon Meirelles na propriedade do senhor Agapite Lourenço - conhecido na Comunidade Pedreira por sua criatividade a partir do trabalho na área da mecânica e da escrita. 


A aula ocorreu no dia 06 de Setembro de 2022, no contexto do Projeto Brasil200, onde a Comunidade Escolar trabalhou o bicentenário da independência do Brasil. Sendo que uma das temáticas propostas era justamente pensar o campo brasileiro a partir dos seus costumes, sem deixar de falar do processo modernizante trazido pela tecnologia. Um grande exemplo nesse sentido é que morando na Comunidade Pedreira o seu Lourenço possui um canal no youtube (https://www.youtube.com/channel/UCJYuL6RGFKG9ku_oRcENAIg) onde compartilha as suas criações com todo mundo que tem acesso a rede mundial de computadores. E pelo número de visualizações dos seus vídeos percebemos que há um público expressivo de admiradores do seu trabalho. 


Entre os seus trabalhos está uma roçadeira, que segundo ele, foi produzida a partir de uma necessidade na labuta do dia a dia, e a falta de recursos para adquirir um equipamento disponível no comércio. E assim com R$ 100,00 ele foi até um ferro velho, adquiriu um motor e algumas sucatas, e sob o olhar incrédulo da sua esposa construiu a roçadeira.  


O seu relato sobre o episódio da roçadeira é bem mais interessante do que as linhas anteriores. Pois além de inventor, seu Lourenço é um bom contador de estórias. Mas aqui o que nos interessa é mostrar como podemos usar a criatividade para resolver os problemas do cotidiano. Óbvio que para isso é necessário conhecimento. Mesmo que não seja formado em engenharia mecânica como ele próprio ressalta, certamente sem nenhum conhecimento nessa área, seria impossível que seu Lourenço fabricasse uma roçadeira elétrica. 



Além da roçadeira os estudantes puderam conhecer outras invenções do seu Lourenço, como por exemplo, rodas de carro e um trator. Nessa linha, o estudante Kedson Campos falou a importância de ter conhecido a oficina de criação do senhor Agapite e sua propriedade. Ressaltando que a aula-campo possibilitou um conhecimento maior da Comunidade onde vivem – aprendendo que com as condições adequadas é possível produzir muitas coisas. 


Um aspecto importante que ressaltamos na fala do estudante é a respeito de que a atividade proporcionou-o conhecer melhor a sua comunidade. Esse é um ponto importante que uma aula-campo proporciona. Muitas vezes vivemos num determinado lugar, mas não o conhecemos verdadeiramente. Outro aspecto importante é a valorização das pessoas da comunidade, como também do seu conhecimento. Nas nossas comunidades, sobretudo as tradicionais, encontramos pessoas com notório saber que poderiam ter mais reconhecimento e por conseguinte ser mais aproveitadas no processo de ensino-aprendizagem. No entanto isso nem sempre acontece. Não que essas pessoas possuidoras de notório saber devam substituir o professor, que tem uma formação específica para isso, como possibilita o Novo Ensino Médio, mas certamente elas podem dar uma enorme contribuição. 


A professora Francisca Fontes, uma das responsáveis pela atividade, falou do objetivo da ação, relatou um pouco de como se desenvolveu e fez uma avaliação da aula-campo na propriedade do seu Lourenço: 



Ao chegar ao local fomos recebidos pelo senhor Agapite. Que nos acolheu com carinho e total atenção. O objetivo da visita era conhecer o trabalho dele com a criação de instrumentos para a lida no campo. Ao entrar na oficina pude observar que todos os produtos eram fabricados de forma rústica, nesse momento me senti em plena Revolução Industrial. E o mais interessante é que cada máquina em miniatura além de ter uma história, funcionava de verdade. Conhecemos: um protótipo de uma roda d’água que me fez lembrar a agricultura egípcia, um mine trator com esteira e arado, um torno mecânico, um triturador, uma máquina de dobrar aço, e a mais interessante criação, uma roçadeira. Foi com essa que tudo começou. Ele contou a história do porquê de sua criação. Ele fez demonstração de todas suas criações e todos ficamos encantados com o professor pardal da comunidade pedreira, de origem cearense e residente no vão dos canários.” 


Continuando, a Professora ressaltou: “Fiquei encantada com a inteligência do senhor Agapite. Sem contar com a aula que nos ministrou sobre tecnologia e ainda deu uma lição de superação para todos ali presente. Após a demonstração de suas criações, fomos convidados a degustar um maravilhoso e saboroso lanche, com destaque para o caldo de cana, manipulado em uma engenhoca fabricado pelo mesmo.” E concluiu: “essa aula para mim foi de suma importância, pois além de despertar e estimular os alunos a desenvolver competências e habilidades que contribuíam com as suas formações, nos mostrou possibilidades de desenvolver o nosso processo de ensino-aprendizagem de forma mais criativa. Minha vontade é de voltar e explorar mais os conhecimentos desse senhor que nos impressionou”.  


A partir do relato da Professora Francisca, percebemos que se a educação no campo trás enormes desafios, sobretudo quanto a permanência do estudante e um processo formativo que o mantenha na comunidade, há diversas possibilidades – possibilidades que foram exploradas muito bem nessa aula-campo. Imagina, o quanto o seu Lourenço conseguiu com suas invenções despertar o instinto inventor nos estudantes que participaram da aula – Estudantes que no dia a dia se deparam com os mesmos problemas do seu Agapite – e que agora passaram a olhar para esses problemas de outra forma – ao invés de cruzar os braços e ficar reclamando, buscaram soluções a partir dos recursos que estão ao seu alcance. Imagine também o tanto de senhores Lourenços não temos nas nossas comunidades rurais, com uma gama de conhecimentos práticos prontos para compartilhar. Faltando apenas um olhar mais sensível que reconheça a importância desses anciãos. 



Enfim, nós da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas do Colégio Estadual Nossa Senhora da Providência (CENSP-Lajeado) temos feito um esforço nesse sentido. Acreditamos que a relação indissociável entre teoria e prática é fundamental para uma formação emancipadora. Partindo da realidade local, buscamos instigar os estudantes a pensar de forma crítica e se apropriar e produzir conhecimentos que contribuíam para melhoria e transformação da realidade em que estão inseridos. Desse modo, acreditamos que estamos caminhando de forma acertada. Cientes dos desafios, mas sobretudo das possibilidades que esses desafios proporcionam. 


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Raimundo Oliveira – Licenciado em Geografia, Pós-Graduado em Educação Ambiental. E Coordenador da Área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas do CENSP-Lajeado. 


Pedro Ferreira Nunes – Licenciado em Filosofia, Pós-Graduado em Filosofia e Direitos Humanos. E Professor da Educação Básica do CENSP-Lajeado. 

domingo, 25 de setembro de 2022

Brevissimos comentários sobre a campanha eleitoral de 2022


Presidenciáveis
 

Tristeza. É o que tenho sentido vendo a propaganda eleitoral dos candidatos mais bem colocados nas pesquisas eleitorais para Presidente da República. Tristeza diante de propostas que não apontam para mudanças estruturais, pelo contrário. Fim do déficit habitacional, equiparação entre o ensino público e privado, conciliação entre o modelo agroexportador, a pequena agricultura e o meio ambiente. Não precisa ser muito inteligente para saber que são impossíveis dentro dos marcos da sociedade atual. Nesse contexto, o Lula acaba sendo o menos pior – é o mais tragavel diante de um Bolsonaro medíocre, um Ciro prepotente, e uma  Tebet e Thronicke sem noção. Ah, que falta faz um Plínio de Arruda Sampaio, que falta faz.


Um motivo para esperançar 

Se a campanha para presidente não tem conseguido me empolgar, para o Congresso Nacional é o contrário. Alguns nomes como o do filósofo Vladimir Safatle (candidato a deputado federal pelo Estaro de São Paulo) tem feito circular propostas importantes numa perspectiva de transformações estruturais. Além dele há diversos nomes progressistas ligados a Universidade e Movimentos Sociais que nos leva a crer na eleição de uma bancada progressista, se não a maior, uma das maiores da história do Brasil. 


Um motivo para esperançar II

É interessante observar que mesmo no Estado do Tocantins temos esses nomes. Óbvio, com uma chance menor de eleição, ao contrário de um Guilherme Boulos e uma Sônia Guajajara em São Paulo, mas pelo menos são nomes que qualificam o debate político no Tocantins. 


Um motivo para esperançar III

Nesses últimos anos a sociedade brasileira parece ter aprendido uma dura lição platônica: - “a punição que os bons sofrem, quando se recusam a agir, é viver sob o governo dos maus." Agora temos a oportunidade de mudar essa realidade. Mesmo no contexto regional, percebemos muitas candidaturas progressistas ligados a Universidade e aos Movimentos Sociais disputando uma vaga na Assembleia Legislativa. Sabemos o quanto é difícil um desses nomes conseguir ser eleito, sobretudo diante de toda uma estrutura que funciona para garantir que as mudanças sejam mínimas. No entanto, já é um avanço vê esses camaradas colocando o nome a disposição  e pautando os problemas reais da população. 


Deslocados

Por outro lado, há aqueles que insiste no discurso conservador contra fantasmas, a exemplo da ideologia de gênero. Estão um tanto fora de tempo – esse discurso já não encontra tantos ouvidos receptivos como em 2018. Diante da crise que assola o país a preocupação imediata é conseguir a próxima refeição. De modo que esse discurso voltado a pauta de costumes está um tanto deslocado da realidade. Que o recado das urnas a essas figuras seja duro.


Mudanças estruturais é preciso

Uma bancada progressista forte, tanto no Congresso Nacional como nas Assembléias Legislativas, com o apoio das ruas é mais importante, do ponto de vista estratégico para vislumbrarmos mudanças estruturais na nossa sociedade, do que a eleição de determinada figura para os cargos executivos. Óbvio que se pudermos eleger, tanto no executivo como no legislativo, nomes progressistas, melhor ainda. Mas que essas possíveis eleições sirvam para fomentar e fortalecer os movimentos sociais com pautas progressistas – como os Sem teto, Sem terra, Indígenas entre outros – que são fundamentais para vislumbrarmos mudanças estruturais na sociedade. 


Governadoráveis

No Tocantins, a oposição parece não está conseguindo fazer frente ao Governador Wanderlei Barbosa (Republicanos). Havia uma expectativa maior em torno da candidatura do Ronaldo Dimas (PL) – expectativa que até agora não tem se confirmado. Ainda não está descartado um segundo turno entre esses dois candidatos, mas não conseguimos sentir isso por parte das ruas. Mesmo com o apoio do Senador Eduardo Gomes, do Presidente Bolsonaro e do MDB do Marcelo Miranda, Dimas não tem conseguido empolgar. Aliás, o apoio do Bolsonaro pode trazer mais ônus do que bônus para ele. Assim como a reivindicação do legado da famigerada União do Tocantins  (UT) – que a ferro e fogo comandou o Estado no auge do Siqueirismo. De modo que a chance maior de um segundo torno no Tocantins está na capacidade dos demais candidatos, sobretudo Paulo Mourão e Irajá, em tirar votos do Wanderlei Barbosa ou conquistar os indecisos, do que propriamente da campanha que o Dimas vem realizando.


Governadoráveis II

Nessa reta final da campanha percebemos uma espécie de tática do tudo ou nada por parte das candidaturas de Dimas e Irajá na tentativa de levar as eleições para o executivo estadual ao segundo turno. O nivel de belicidade, sobretudo por parte de Irajá, ultrapassou as divergências políticas e virou pessoal. E o Dilmas, oportunisticamente tenta aproveitar. A probabilidade de que essa tática mude o quadro apontado pelas pesquisas de vitória do Wanderlei é quase nula. E pode a ter ser compreendida como desespero. Além disso, com esse questionamento Irajá e Dimas podem estar dando tiro no próprio pé, pois com esse questionamento mais do que atingir o governador, atinge aqueles que foram contratados e que passaram mais do que nunca trabalhar contra seus adversários. 


Dorinha x Kátia 

A disputa pela vaga ao Senado tem sido protagonizada desde o início da campanha eleitoral por dois nomes tradicionais da política tocantinense – A senadora (de dois mandatos) Kátia Abreu e a Deputada Federal Dorinha. E como era de se esperar o embate entre as duas tem esquentado nessa reta final, sobretudo com uma campanha mais agressiva de Kátia contra Dorinha questionando sua experiência e competência para representar o Tocantins no Senado. No entanto esse discurso é insuficiente para reverter a tendência apontada pelas pesquisas que indicam o favoritismo de Dorinha. Até por que a candidata do União Brasil não é exatamente uma inexperiente na política como tenta pintar Kátia. E por fim, convenhamos, depois de 16 anos de mandato, o tocantinense tem razão em querer mudar o seu representante no Senado. Deveria fazer o mesmo também em relação aos deputados. 


E assim seguimos

Incrédulo de quem quer que seja eleito, sobretudo no caso da Presidência da República, não fará o enfrentamento aos problemas estruturais da nossa sociedade. Mas confiante na eleição de um congresso nacional mais plural, com maior representatividade de setores progressistas com capacidade de fazer frente a bancada do boi, da bala e da bíblia. E que esses ventos da mudança também possam reverberar no Tocantins. 


Por Pedro Ferreira Nunes – Educador, Poeta e Escritor Popular. 


terça-feira, 20 de setembro de 2022

Conhecimento e o exercício crítico da Cidadania

Em um célebre poema, o poeta e dramaturgo alemão Bertold Brecht salienta o quanto o analfabetismo político afeta a nossa vida. E não é fácil lutar contra isso, pois quase sempre o analfabeto político se caracteriza pelo orgulho da sua ignorância – que é alimentada por aqueles que não tem interesse de uma participação efetiva da população na esfera pública. Isso vai formando uma cultura que se reflete na frase “eu não gosto de política”. 

Sentimos isso na prática ao abordar a temática em sala de aula. Mas ora, uma educação que tem como um dos seus fundamentos a formação para cidadania (LDB 9394/96) não pode deixar de encarar esse problema. Foi então o que buscamos fazer a partir das aulas de Filosofia junto às turmas do Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos (EJA) do CENSP-Lajeado. Em relação a EJA o desafio foi maior pois estamos falando de um público que já tem uma vivência – e nessa vivência uma experiência que o faz ir criando uma espécie de ressentimento com a política. É o ressentimento com o vereador ou prefeito fulano de tal que prometeu e não cumpriu. Geralmente a promessa se refere a emprego.

Para problematizar essa visão acerca da política, além das aulas de filosofia, sentimos também a necessidade de desenvolver um projeto envolvendo outros componentes curriculares, e daí nasceu o Projeto Política e Cidadania que consistiu em diferentes ações pedagógicas com o objetivo de pensarmos criticamente a relação entre política e cidadania a partir da realidade local, entre elas, visita a Câmara Municipal de Vereadores e participação nas sessões ordinárias.

Também ao longo do Projeto os estudantes assistiram o documentário “O dia que durou 21 anos” (2012), possibilitando uma reflexão acerca do exercício da Cidadania em dois contextos distintos da nossa história política. Ao final foi realizado uma roda de conversa para socialização e avaliação do evento onde percebemos uma nova postura deles em relação a política local. 

Com a experiência vivenciada por eles no decorrer do Projeto Política e Cidadania, agora tinham conhecimento para fazer uma crítica a gestão municipal e o poder legislativo – uma crítica, não com base em achismo ou mágoa pessoal, mas do conhecimento obtido a partir de uma experiência vivida in loco.

E foi esse aspecto que buscamos dá ênfase, isto é, a importância do conhecimento, para o exercício critico da cidadania. A partir do momento que eu conheço, a minha crítica torna-se uma crítica consciente, e então ela tem potência para provocar mudanças. Isso exige, no entanto, que seja abandonado uma posição de comodismo, como diria Kant, de menoridade, isto é, preguiça de pensar por si mesmo.

Um dos aspectos importante do nosso trabalho com essa temática foi a abordagem a partir da filosofia da práxis, isto é, dá ideia de que não basta compreender o problema, é preciso buscar resolve-ló. Para tanto a união entre teoria e prática é indissociável. Isto é, o discurso não pode ser diferente da prática.

Aliás, esse é um dos aspectos que mais contribui para alimentar o analfabetismo político – a incoerência – discurso e prática separados por uma barreira intransponível. O nosso trabalho então é de resistência, pois não acreditamos que possa existir um regime verdadeiramente democrático sem a garantia de uma cidadania plena.

E não estamos fazendo nada de extraordinário, mas apenas buscando trabalhar de fato o que pressupõe a Lei de Diretrizes e Bases da Educação  (LDB - 9394/96) ao enfatizar a formação para o exercício da cidadania, como também a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), por exemplo, na competência 10 (Responsabilidade e Cidadania).

Essa questão ganha uma importância especial no contexto eleitoral. Pois num momento onde somos convocados a escolher nossos representantes políticos, tanto no executivo como no legislativo, conhecer as ideias e os projetos que esses candidatos, e candidatas, defendem, é fundamental para que possamos cobrar posteriormente. Pois o exercício crítico da cidadania passa também pela escolha consciente dos nossos representantes.

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos.

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Conto: Uma aventura

“Put a candle in the window,/'Cause I feel I've got to move./Though I'm going, going,/I'll be coming home soon,/Long as I can see the light...”. Essa canção fez vir a sua memória uma lembrança há muito tempo adormecida. Lembrança de uma aventura que nunca revelara nem para melhor amiga. Ainda que na época do acontecido, uns 20 anos atrás, houvesse quem especulasse. 

Era uma sexta-feira, seu noivo estava viajando á trabalho. Ele queria muito que ela fosse junto, mas não pode pois estava acontecendo um evento na faculdade, e ela fazia parte da comissão organizadora. Naquele dia teriam um convidado de outro Estado – um escritor que vinha ganhando destaque no cenário nacional com suas obras, e que a crítica apontava como um novo Lima Barreto. O tal escritor não gostava muito de participar de eventos públicos. Portanto seria uma oportunidade única de conhecer aquela figura que na medida que ia ficando mais conhecido, se tornava menos acessível, impondo a si mesmo uma reclusão.

O evento ocorreu de forma tranquila. A palestra com o tal escritor havia feito muito sucesso. Ainda que ela não achara grande coisa. Porém, como membro da comissão organizadora sentia-se feliz pelo sucesso do evento. O que pedia uma comemoração. E então juntamente com os demais colegas partiu para o bar do Velho Hippie. 

Aquilo não era muito o mundo dela, ainda mais sem o noivo. Mas deixou se levar pelos colegas. Qual não foi a surpresa dela ao se deparar num canto com o tal escritor – fumando um cachimbo e tomando conhaque. Ele lhe pareceu tão interessante – era como se um daqueles personagens rock in roll de suas estórias tivesse ganhado vida. Começaram a trocar olhares e logo estavam conversando como se fossem velhos conhecidos.

Ela nunca havia se sentido atraída por homem algum desde que conhecera o seu noivo. No entanto cada segundo perto daquele desconhecido alimentava um desejo quase incontrolável de se entregar a ele. - Como era encantador aquela figura. Pensava ela. Ela então se arrependeu de estar ali, quis ir embora, mas não conseguiu. 

Ela notava que ele também sentia alguma atração por ela, no entanto em nenhum momento avançou o sinal. Talvez estivesse inibido pela aliança dela. Quando ela se tocou já era tarde para esconder o anel de compromisso.

- Vai passar o final de semana aqui? Não quer curtir a natureza um pouco antes de voltar para a selva de concreto? Perto daqui tem uns lugares incríveis. Quando ela percebeu tinha praticamente pedido para que ele não fosse embora – que fugisse com ela para o meio da natureza onde pudessem ficar a sós. Ele não pensou duas vezes. Pouco tempo depois seguiam numa moto rumo ao interior. Ela conhecia uma pousada não muito longe dali onde podiam se hospedar e curtir a natureza sem serem incomodados por ninguém. 

Foi uma viagem inesquecível. Ela se entregou a ele como já mais se entregara a homem algum. Por trás de uma imagem rock in roll, sempre com um cachimbo e tomando conhaque, havia um cara romântico. Era como se eles se conhecessem a vida toda – a intimidade entre eles era completa. Assim passaram aquele final de semana tendo como trilha sonora além da natureza, o som do Creedence, que entre outras estava aquela canção que a fez recordar daquela estória. 

Na segunda-feira eles retornaram. Ele partiu de volta para sua terra e ela voltou para sua vida ao lado do noivo, com quem se casou pouco tempo depois. Nunca mais ouviu falar dele, que ao contrário do que diziam, não se tornou um um escritor de sucesso. Mas não esquecerá aquela aventura que levaria em segredo para o túmulo. 

Por Pedro Ferreira Nunes – Apenas um rapaz latino-americano, que gosta de ler, escrever, correr e ouvir Rock in roll. 




 


sábado, 10 de setembro de 2022

A violência e o desafio da construção de uma cultura de respeito a dignidade humana

O respeito a dignidade humana é reconhecido por parte do Estado brasileiro em diferentes documentos, entre eles a Constituição Federal de 1988, que elenca-a como um dos direitos fundamentais de todo cidadão brasileiro. No Plano Nacional de Direitos Humanos  (PNH3) essa questão é reafirmada, ressaltando o papel dos agentes públicos e da sociedade em geral na sua efetivação. No entanto, na prática, os direitos humanos parece ser opcional, como aponta a violência cotidiana a qual é submetida, sobretudo, as populações marginalizadas.

A violência não é um fenômeno recente e não diz respeito a uma realidade específica. Não precisamos nem assistir o jornal para confirmar esse diagnóstico, pois vivenviamos no dia a dia, seja  na comunidade ou dentro de casa. Quando analisamos a história da humanidade é difícil se contrapor a ideia de Thomas Hobbes de que o ser humano é mau por natureza. Daí a necessidade de um poder absoluto que garanta a segurança dos cidadãos. Na prática essa segurança é para o “cidadão de bem”, aquele que possui os meios de produção. Aos demais há que se submeter a ordem dominante, sem direito ao mínimo de dignidade. 

Marx tem razão quando afirma que o Estado é um instrumento de dominação de uma classe sobre outra. É a partir da sua crítica que compreendemos como a violência se torna estrutural. Isto é, ela está na base de um modo de produção que organiza a sociedade a partir da exploração daqueles que precisam vender sua mão de obra para sobreviver, por aqueles que detém os meios de produção.

Essa relação de exploração foi estruturando uma sociedade desigual. Nesse contexto o Estado que deveria contribuir para superação dessa desigualdade ao servir como um instrumento de conciliação dos conflitos, é utilizado para manter a ordem dominante. É daí que temos a violência do Estado, ou seja, aquela que se estrutura a partir da lógica de que é preciso manter a ordem. 

Na prática o que acontece é a repressão á população marginalizada que está excluída das benesses do Estado de direito. Desse modo, o Estado que deveria proteger, torna-se um agressor – que deveria garantir a dignidade humana, age de forma contrária. Essa violência não se reduz a utilização da força física. Talvez a sua forma mais eficaz seja a violência psicológica, ou seja, aquela que age sobre a consciência dos indivíduos obrigando-o a se comportar de determinado modo.

Nesse contexto, Marcuse nos ajuda a compreender essa questão ao analisar a ideologia da sociedade industrial caracterizada pela transformação da racionalidade tecnológica em instrumento de dominação política, que se dá sobretudo a partir da introjeção de determinados valores que contribui para manutenção da ordem dominante. Com isso a alienação apontada por Marx, transforma-se em autoalienação.

Para superar esse processo o filósofo Vladimir Safatle, salienta que devemos pensar a sociedade como um circuito de afetos – que desde Hobbes tem o medo como fundamento. De modo que se quisermos uma transformação qualitativa da sociedade devemos supera-lo.

Safatle nos diz que: “o Estado não tem apenas o direito de vida e morte, ele tem o direito de desaparecimento. Por que o eixo fundamental do processo de gestão é gerir a invisibilidade. Sobre esta violência, não haverá marcas, não haverá nomes, não haverá imagens, não haverá afeto nem identificação”. 

Nesse contexto não podemos falar em dignidade humana. O que se vê é o contrário. O Estado que deveria ser um dos principais agentes na garantia desse direito acaba por gerir a invisibilidade – acaba negando o direito a memória –algo tão importante para nossa constituição enquanto povo.

Nessa perspectiva o filósofo Paulo Arantes pontua que “o Estado de Direito encontra-se a deriva no mundo inteiro: ainda é norma incontornável, porém cada vez mais inefetiva”. Isto é, só existe no papel, ou pior ainda, é seletivo.

E nós como ficamos diante desse contexto? Nos parece que por mais que pareça difícil de mudar não podemos aceitar como normal o ataque aos direitos humanos e a criminalização daqueles que lutam por estes direitos. Quando nos silenciamos diante desse ultraje estamos contribuindo para que a violência contra populações marginalizadas sejam naturalizadas. E também estamos abrindo espaço para que projetos autoritários avance sobre regimes democráticos. Desse modo concluímos com Bertold Brecht: “Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar.”

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. 


segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Filosofia e literatura: relato de uma experiência a partir da leitura da obra “O cortiço” do Aluísio Azevedo

Quando me desafiei a trabalhar a literatura brasileira no contexto do Projeto Brasil200 – Bicentenário da Independência. Não tinha muito claro o que iria fazer e nem como. Tinha apenas a convicção de que teria um leque de possibilidades para trabalhar as raízes e riquezas a partir de uma perspectiva crítica. 

No entanto, pelo espaço de tempo reduzido, era necessário fazer escolhas. Daí que optei por trabalhar uma obra específica – o que nos possibilitava um estudo mais aprofundado – essa obra foi o livro “O cortiço”.  Mesmo assim, ainda era muita coisa para o pouco tempo de horas aulas semanais que tínhamos. De modo que para garantir que de fato a leitura, a análise e discussão fosse feita pelos estudantes, optamos por ficar no capítulo 1 – que no nosso ponto de vista já trazia elemento suficiente para uma boa discussão sobre a questão ética – objeto de conhecimento que estávamos desenvolvendo no Componente Curricular de Filosofia.

Para nortear a leitura e análise da obra elaboramos algumas questões. As duas primeiras se referiam a quem era o autor e o contexto que ele produziu a obra (1- Quem é o autor? Faça um breve resumo da sua biografia; 2- Em qual contexto histórico a obra foi escrita?). Num exercício hermenêutico, são questões fundamentais para compreensão do livro. As questões seguintes referiam-se a obra propriamente (3- Do que trata a obra?; 4- Quais são os principais personagens?). Ainda que o exercício se resumia a leitura e análise do capítulo 1 do livro, era questões possíveis de ser respondida. Por fim, as duas últimas questões exigia exercício de pensamento  (5- Como você avalia a conduta ética dos personagens?; 6- O que a obra nos ensina sobre o Brasil?). Para responder essas questões, sobretudo a quinta, eles deveriam utilizar a base teórica que aprenderam nas aulas de introdução a Filosofia Moral.

Num contexto em que o hábito da leitura não é muito comum, não houve surpresa da minha parte quando encontrei resistência dos alunos em fazer a leitura e responder a atividade proposta. Porém no decorrer da leitura foram sendo fisgados pela escrita brilhante do Aluísio Azevedo ao nos apresentar João Romão, Bertoleza, Miranda e Dona Estela. Eu me divertia ouvindo o comentário deles sobre os personagens e intervia pontualmente esclarecido algum termo ou contexto histórico – como por exemplo, o que era um escravo de ganho – situação da Bertoleza.

A escolha do livro “O cortiço”, e do capítulo 1 especificamente, não foi aleatória. Além de ser uma obra prima da nossa literatura, nos permite problematizar questões importantes sobre a nossa formação enquanto povo. Escrito no pós-independência, O cortiço é considerada a obra inaugural do movimento naturalista no Brasil, que entre outras questões defende uma visão antropológica de que o homem é produto do meio. 

“e, naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como lavas no esterco”.

Eis a descrição que o nosso escritor faz do Cortiço (Ou seria do Brasil?). Partindo da tese naturalista é possível imaginar que tipo de gente sairia dali. Noutra passagem ele descreve o português João Romão  (um bom exemplo da elite brasileira?):

“Sempre em mangas de camisa, sem domingo nem dia santo, não perdendo nunca a ocasião de assenhorear-se do alheio, deixando de pagar todas as vezes que podia e nunca deixando de receber, enganando os fregueses, roubando nos pesos e nas medidas...”.

Como esperávamos, essas questões foram ressaltadas no exercício feito pelos estudantes. Eles conseguiram capitar bem, assim como relacionar a conduta ética dos personagens com a nossa realidade. 

Depois da devolutiva deles, fiz uma análise geral da obra problematizando algumas questões, relacionando ao contexto histórico em que o livro foi publicado e as questões que estavam em debate na sociedade brasileira – questões que levaram, por exemplo, a uma política, por parte do Estado brasileiro, de branqueamento da população através do incentivo da imigração Europeia para o Brasil. Ao final, o nosso exercício de leitura critica, mostrou-se uma experiência exitosa. Além de pensarmos o nosso país a partir da literatura, estimulamos a leitura e a crítica. 

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. Atua como Professor da Educação Básica no CENSP-LAJEADO.