segunda-feira, 28 de junho de 2021

Muhammad Saeed al-Sahhaf ou “Onyx, o cômico”

A entrevista do Secretário Geral da Presidência da República do Governo Bolsonaro – o desprezível Onyx Lorenzoni – no episódio referente a Covaxin me fez lembrar de uma figura marcante na invasão do Iraque pelo exército estadunidense em 2003. O então Ministro da Informação de Sadan Hussein – Muhammad Saeed al-Sahhaf.

Eu, um estudante do ensino médio no interior tocantinense, acompanhava com interesse, através dos meios de comunicação, o conflito. Desde o atentado as torres gêmeas em 11 de Setembro que passei a acompanhar com maior interesse questões políticas internacionais. Cursava o ensino médio a noite e quando chegava ligava a televisão e ia assistir o Jornal da Globo.

Entre os personagens daquele episódio Al-Sahhaf – o então Ministro da Informação Iraquiano e Porta-Voz do Governo Sadan Hussein – me chamou atenção. Aliás, de todos que acompanhavam a cobertura da mídia. Primeiro por que ele era o único do Governo que dava as caras. Mas sobretudo pelo fato de que suas declarações iam totalmente contra os fatos. Isso fazia dele uma figura um tanto cômica mesmo diante do seu ar sério e uma fala sempre em tom ameaçador.

Diante disso lhe deram a alcunha de “Ali, o cômico”. O porta-Voz de um Governo em queda livre. Mas que ele insistia em dizer ser uma fortaleza.

Brasil, 2021. Olha só, temos o nosso Al-Sahhaf. Das tantas figuras medíocres que compõem esse governo. Onyx é o que mais se assemelha a figura de Al-Sahhaf, sobretudo quando analisamos a sua atuação na entrevista coletiva para tentar negar as acusações envolvendo o caso Covaxin. Ou suas declarações no Twitter como: “Sobre a covaxin: Pra atacar o Presidente vale qualquer coisa, vindo de qualquer um. Mais uma vez a verdade acaba com as narrativas e mentiras. Vamos entrar no 31° mês de governo sem corrupção. Isso incomoda demais.”

Não meus caros, não riam, não é uma piada. É uma declaração do Secretário Geral da Presidência da República do Governo Bolsonaro. Tal como Al-Sahhaf, as declarações de “Onyx, o cômico” não condiz com os fatos. Ele, assim como os seus pares vivem numa realidade paralela. Tenta mostrar força de um Governo que cheira a cadáver. Aí de nós, aí de nós. Seria cômico se não fosse trágico.

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. 


quarta-feira, 23 de junho de 2021

Por mais afetos alegres na Escola: Alguns pontos

Banksy
1- A Escola não é um espaço deslocado do resto da sociedade. De modo que várias expressões da questão social na sociedade são reproduzidas no ambiente escolar, o que faz com que as relações nesse ambiente sejam atravessadas por conflitos – conflitos políticos, conflitos de interesses, conflitos pessoais e conflitos emocionais;

2- Nesse contexto pandêmico os conflitos tendem a se intensificar pelo fato de que as emoções estão a flor da pele. As pessoas estão tão saturadas de tudo que uma gota qualquer faz o copo transbordar;


3- A carga de trabalho que os profissionais da educação estão tendo que suportar, não pode ser classificada de outra coisa se não de desumana – que, portanto, a médio e longo prazo é humanamente insuportável;


4- Quem atua na educação dificilmente não tem um exemplo de alguém que se afastou do trabalho ou preferiu se aventurar em outra área, por não suportar a carga de trabalho, as exigências burocráticas e, ainda mais, a falta de reconhecimento por parte da sociedade que propagou a ideia que não tendo aulas presenciais os profissionais da educação estavam recebendo sem trabalhar;


5- Entre os profissionais que atuam na educação há um grupo que merece uma atenção especial. Trata-se do pessoal que permaneceu na escola mesmo não tendo aulas presenciais. Sobretudo os que trabalham na higienização, garantindo que o ambiente escolar seja um ambiente seguro;


6- Em algumas escolas esses profissionais tiveram que se desdobrar para dá conta do serviço devido o afastamento de servidores do grupo de risco. E passado pouco mais de 1 ano de pandemia no Brasil e mais de 500 mil vidas perdidas. Esses servidores estão esgotados tanto físico como mentalmente;


7- O acolhimento socioemocional dos estudantes tornou-se uma prioridade. E de fato é algo essencial. Mas quem está fazendo o acolhimento socioemocional dos servidores? 


8- Precisamos fazer circular afetos alegres no ambiente escolar. Isso não quer dizer que tenhamos que negar os conflitos. Pelo contrário. Eles fazem parte da dinâmica das relações. No entanto devem ocorrer num ambiente de respeito;


9- Empatia e Cooperação não podem ser palavras vazias no currículo. Elas devem ser vivenciadas na escola. Por que se não virá demagogia. Ora, como eu vou falar em “exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, suas identidades, suas culturas e suas potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza” (Competência 09 da BNCC). Se na relação com o meu colega de trabalho eu não prático isso?!


10- No contexto atual não há ninguém 100% bem mentalmente no ambiente escolar. Por tanto é preciso cuidado com cada gesto, ações e palavras – uma mensagem intempestiva, um comentário desnecessário. São coisas que fazem circular afetos com a capacidade de tornar o ambiente escolar insalubre, tóxico. E se temos a capacidade de fazer circular afetos, por que não fazermos circular afetos alegres? 


Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. Atualmente é Professor da Educação Básica no CENSP-Lajeado.

quinta-feira, 17 de junho de 2021

Resistência e luta no interior do Tocantins

Diego Rivera
Chegaram no terreiro da humilde casa e fizeram o comunicado. – vocês precisaram deixar esse terreno, pois adquirimos o mesmo do antigo proprietário e agora ele nos pertence. 

Eles não puderam deixar de ficar abalados com aquela notícia. Para onde iriam? Já estavam há mais de 10 anos ocupando e cultivando aquele terreno e ter que abandona-lo assim do dia para noite não podia ser. – temos direitos e não iremos abrir mão deles.

- Que direito? Pobre não tem direito. Conformem-se, peguem as trouxas e vão embora. Eles tem muito dinheiro. Já mais vão abrir mão dessa terra. Dizia o povo da região. 

Foi então que eles perceberam que a luta seria dupla. Contra o suposto proprietário e contra a mentalidade conformista daqueles que preferiam abrir mão dos seus direitos a enfrentar os poderosos. Essa mentalidade, aliás, era pior. Pois além de desencorajar. Não conseguindo o objetivo, passava a criticar. Dizendo se tratar de uma ingratidão.

- Nos exploram. Querem nos expulsar da terra que adquirimos por direito. E isso é ingratidão? 

- Não. Não desistam. O direito de posse é de vocês.  E vocês precisam fazer esse direito valer. Vão na Defensoria Pública. Não confiem nas autoridades locais. Se elas puderem interferir de alguma forma será para favorecer os poderosos.

E assim eles fizeram. Seguiram o Conselho do Assistente Social e foram até a Defensoria Pública. Enquanto o defensor parecia não muito convicto da ação, o suposto proprietário agia. Agia por um lado articulando com funcionários da prefeitura. E por outro através de ações criminosas como mandando suspender de forma ilegal o fornecimento de água e energia do terreno. 

Eles não entenderam quando o serviço de água e energia fora suspenso. – ora, sempre pagamos a fatura em dia. O que está acontecendo? Descobriram que o suposto proprietário havia solicitado a transferência dos serviços para o seu nome e depois pedido a suspensão. A justificativa junto a justiça era que os posseiros não estavam pagando a fatura e com isso o nome do suposto proprietário estava ficando sujo.

O objetivo era intimidar os posseiros, fazer terrorismo. Mas o tiro saiu pela culatra. A justificativa utilizada pelo suposto proprietário para pedir a suspensão do serviço de água e energia era muito fácil de desmontar. Os registros das empresas fornecedora apontariam que esses serviços de água e energia nunca tiveram no nome do suposto proprietário. Como também de que nunca deixaram de ser pago – as vezes com atraso devido a condição de vida difícil da família de posseiros. 

- Como pode um Juiz, fora da sua jurisdição. Autorizar um absurdo desses. Não vamos deixar isso ficar assim. Vamos aonde for preciso. A Defensoria Pública precisa agir depois dessa se não cada vez mais eles se sentiram no direito de agir criminosamente contra vocês. Alertou o Assistente Social. 

- Se a Defensoria Pública no interior não quer entrar com a ação vamos para Capital.

- O que ele está esperando para agir?! O terreno pertence a vocês por direito. O defensor já deveria ter entrado com o pedido de posse. Nós aqui não podemos. Tem que ser ele lá no interior. 

Eles então voltaram para o interior. Chegando lá não tiveram grande dificuldade. O Defensor já tinha sido convencido, não se sabe por quem, a entrar com a ação. 

- Vocês são doidos.  Eles vão matar vocês. Desistam disso. Ao invés de apoio, era o que ouviam. Como também: -Ah, querem tomar a terra do homem. No fundo, não passava de um discurso que revelava o ressentimento contra aqueles que não se acomodam e lutam pelos seus direitos.

Quando chegou o momento de julgar a ação. Não houve disputa. Era tão evidente que o terreno pertencia aos posseiros que a defesa do suposto proprietário não teve muito o que fazer. Pior ainda teve que justificar a ação criminosa ao mandar suspender o serviço de água e energia do terreno.

Esse pequeno relato é de uma história real. Omito o nome dos envolvidos propositadamente, até por que o mais importante é o exemplo – o exemplo de que não devemos nos intimidar e deixar de lutar pelos nossos direitos. 

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. 

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Resenha crítica: Morte no Atlântico Sul

Um jovem casal se conhecem no litoral catarinense e se apaixonam perdidamente. Ele – um argentino, introvertido, que vive com sua mãe no país de Dieguito Maradona. Ela – uma estudante brasileira, romântica, que vive com os pais e um irmão. Para viver esse amor precisaram superar algumas barreiras: a timidez, a distância e a Guerra.

Eis ai em resumo a trama que o autor Pedro Alberici nos apresenta no romance “Morte no Atlântico Sul”. Uma obra publicada em espanhol no ano de 1987 com o título de “La história de Andrés”. E em português no ano de 1988, com o presente título. 

Estando na sua 10° edição(Editora Veloso), é a obra mais conhecida desse escritor carioca que morou por alguns anos em Santa Catarina, mas desde 2004 reside no Tocantins. Com uma vasta produção literária que perpassa por diversos gêneros, Alberici tem se tornado uma referência quando se fala em literatura produzida no Tocantins.

Em “Morte no Atlântico Sul”, o autor nos leva a uma viagem pelo litoral catarinense onde tem início a estória de amor de Andrés e Elita. Como já dissemos no início, ele é um jovem solitário argentino e ela uma estudante brasileira. Para viver essa estória eles precisaram vencer a timidez que impede que um fale o que está sentindo pelo outro – o que também contribuirá para esclarecer maus entendidos. Precisaram vencer a barreira territorial, pois vivem em países diferentes, apesar de não muito distante. E por fim, precisaram sobreviver a guerra.

A obra tem um pé no realismo e outro no romantismo. Mas eu diria que pende mais para o segundo. Nem tanto em relação ao estilo de escrita, mas sim a partir de uma análise da subjetividade da obra. Há uma idealização de uma espécie de amor puro. Há até mesmo uma idealização do lugar onde se passa a maior parte da estória – como se fosse o paraíso. Tanto que mesmo com o fato narrado sendo ambientado em 1982 não se vê nenhuma menção a situação política do país que naquele momento ainda estava sob o regime de uma Ditadura Civil-Militar. 

O evento histórico que marca a narrativa é a Guerra das Malvinas ocorrida no país vizinho. Mas que não é abordada de uma perspectiva realista, e sim romântica. A guerra aqui aparece como a grande ameaça ao amor idealizado de Andrés e Elita. O título da obra vem daí. Mas creio que o título em espanhol representa melhor o que é a estória de fato.

A obra do Pedro Alberici me lembrou muito as novelinhas “teen”. Certamente o público jovem se deliciará com a estória de amor de Andrés e Elita. É interessante como o autor vai intercalando a narrativa entre a vida de um e outro, até que ocorre o encontro. Interessante também é a personagem Clarisse que também poderia ser colocada como uma ameaça ao amor do casal protagonista. 

Enfim, é uma obra que pode muito bem contribuir para despertar o prazer da leitura entre os jovens. Com uma escrita objetiva e próxima do nosso cotidiano (no caso de quem não é do Sul certamente estranhará alguns termos)o leitor devorará a estória em poucas horas. Portanto fica aqui a dica, leiam “Morte no Atlântico Sul”, do Pedro Alberici. 

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. Atua como Professor da Educação Básica no CENSP-Lajeado.

segunda-feira, 7 de junho de 2021

Como Marx já dizia

É Bolsonaro, a vida não tá fácil, né meu?! A realidade tem sido bastante cruel com tuas ideias. Elas podem até servir por algum tempo como força de atração a criaturas ressentidas e desiludidas. No entanto a realidade tratará de mostrar a sua insignificância e colocá-la no seu lugar apropriado.

Sinceramente, sabíamos que isso aconteceria. É fácil derrotar inimigos que não existem como mamadeira de piroca, ideologia de gênero, doutrinação comunista nas universidade e etc, etc, etc. O problema é que a realidade exige de nós muito mais do que discurso. Pena que o Brasil tenha que ter perdido tantas vidas para descobrir isso.

Marx já nos dizia nas teses sobre Feuerbach: “É na prática que o homem deve provar a verdade, ou seja, a realidade e o poder do seu pensamento”. Isto é, o critério para determinar a verdade de um dado objeto é a práxis.

Para compreendermos melhor essa tese recorramos a Adolfo Sánchez Vásquez. De acordo com esse filósofo a tese II (cujo um trecho citamos acima)tem uma importância central pois “nos faz ver o papel da prática no conhecimento em uma nova dimensão: não só proporciona o objeto do conhecimento como também o critério de sua verdade (2011, p. 148).

A primeira consequência dessa tese é que é preciso sair da esfera do pensamento para poder fundar a verdade de um pensamento. Fora da prática não é possível determinar se uma ideia é verdadeira ou falsa. “Pois a verdade não existe em si, no puro reino do pensamento, mas, sim, na prática” (2011, p. 148).

Como isso se dá? A partir do seguinte ponto. Quando, fundamentados numa determinada ideia, nos propomos a algo e não alcançamos o resultado esperado. Então é por que essa ideia era falsa.

No entanto, Vásquez nos chama atenção para um ponto importante. Dizer que um juízo sobre determinado objeto é verdadeiro ou falso. O verdadeiro não significa êxito e o falso fracasso. “Se uma teoria pode ser aplicada com êxito é por que era verdadeira, e não ao contrário (verdadeira por que foi aplicada eficazmente)” (2011, p. 149). Desse modo, o êxito não é o que determina a verdade,  apenas torna ela visível. Isto é, mostra que “o pensamento reproduz adequadamente a realidade” (2011, p. 149).

Outro aspecto para o qual o filósofo nos chama atenção é que a prática não fala por si mesma. Os fatos práticos precisam ser analisados. “O critério de verdade está na prática, mas só é descoberto em uma relação propriamente teórica com a própria prática” (2011, p. 149). Isso deve ser feito para que a prática se torne transparente. Com isso, percebemos uma unificação entre teoria e prática. 

De acordo com Vásquez (2011), é possível perceber um duplo movimento. Primeiro: Da teoria a prática. E segundo: Da prática a teoria. Com isso Marx se distância tanto da concepção idealista como empírica. Ao propor uma relação intrínseca entre teoria e prática – a partir desse movimento de teoria a prática e da prática a teoria conseguimos entender o governo Bolsonaro.

Certamente, isso é uma discussão que o conjunto da população ignora. Mas o preço dos alimentos no supermercado não dá para ignorar. Não dá para ignorar o aumento do custo de vida e a desigualdade. Não dá para ignorar o vazio que aquela pessoa querida que morreu na pandemia de uma morte evitável deixou. Cabe a nós mostrar como essas expressões são consequência das ideias defendida pelo Presidente.

Desse modo, não podemos deixar de dizer, se a vida está difícil para o Bolsonaro. Imagina para quem votou nele acreditando nas suas falsas verdades. Mas nunca é tarde para acordar para realidade.

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos.

quinta-feira, 3 de junho de 2021

Consciência de Classe na Estrada

Mais um sábado em Laje city. Levanto um pouco mais cedo do que o costume, pois preciso ir a Palmas. Tento evitar ao máximo essas viagens. Mas não tem jeito, chega uma hora que tenho que fazê-lo – há certas burocracias que não se resolve por aqui.

Levanto lá sem muito entusiasmo e vou lavar o rosto. Depois é boina na cabeça, mochila nas costas, garrafinha com água, fone de ouvido na mão. Ah, e a máscara, é claro. Pronto, pé na estrada rumo ao ponto do transporte. Quanto mais cedo conseguir ir mais cedo estarei em casa novamente – espero não dá o azar de ficar mais de 1 hora no ponto, como da última vez que fui á capital.

Chegando ao ponto notei um movimento de um pessoal tomando café numa barraquinha de lanches que se instalou ali recentemente. Entre eles um motorista de um caminhão cegonha que me pareceu, pelo tipo físico, um Gaúcho. Esperando transporte propriamente não havia ninguém. Eu me aconcheguei em baixo do ponto para me proteger do sol e fiquei olhando o movimento na rodovia esperando surgir a qualquer momento uma Van no sentido Lajeado – Palmas.

Enquanto isso observei que o ponto do lanche estava esvaziando. Ficou apenas o motorista do caminhão cegonha. Notei que ele conversava com o senhor, que o servia, sobre aposentadoria. E logo a conversa deles me chamou atenção pelo tom crítico. 

Eu continuava de olho na rodovia mas com o ouvido na conversa dos dois. Não sei como eles adentraram no assunto. Mas creio ter sido o fato de alguém (o senhor do lanche) naquela idade está trabalhando. 

- Quando o senhor aposentar e se conseguir aposentar será com um salário mínimo. Um absurdo. A gente trabalha a vida toda para isso. Disse o caminhoneiro que continuou – Esses políticos são todos uns canalhas. Só fazem mudanças que os beneficiam. 

O senhor do lanche por sua vez fazia suas colocações concordando com o caminhoneiro. Não sei por que mas imaginei que logo viria uma defesa do governo Bolsonaro. Mas ai o caminhoneiro disse: - Não vê esse ai rodeado desses generais que ganham salários absurdos, e para o povo é só miséria. Só querem saber deles, os trabalhadores que morram trabalhando.

Sorri internamente e pensei comigo: - opa, não é um Bolsominion. Mas a melhor parte da conversa estava por vim. 

- Esses dias lá em Porto Nacional tive que mandar um calar a boca. Eu não gosto de me estressar com essas discussões. Evito ao máximo. Mas dessa vez não deixei passar. Sabe aquele projeto que reduz a multa do FGTS em caso de demissão do trabalhador sem justa causa de 40% para 20%? O cara veio me dizer que achava justo. Ai eu perguntei se ele era patrão e que provavelmente tinha uns 30 caminhões. Ele me disse que era empregado. Ai eu mandei ele calar a boca pois não sabia o que estava falando. Como assim? Concordar com a retirada dos nossos direitos. Uma coisa que a gente não conquistou de mão beijada e que se perdermos vai ser difícil conseguir novamente. Ai o cara me veio com uma conversa que fora do Brasil é assim. Mas fora do Brasil, porra. Vai ver quanto um motorista ganha lá. Vai ver as condições das estradas. Agora vem trabalhar no Brasil, dirigir nessas estradas horríveis que temos, com as condições de trabalho que somos submetidos. Ai você vem me falar em apoiar retirada dos nossos direitos?

- Isso é que é consciência de classe, meu camarada. Isso é que é ter consciência de classe. Pensava eu comigo enquanto ouvia o discurso do caminhoneiro. 

Depois a conversa descambou para questões pessoais. Nela descobri que ambos eram paulistas. Olhando o seu caminhão com mais detalhe percebi uma bandeira do Estado de São Paulo ao lado da do Brasil. Também observei um adesivo da banda Metallica bem em frente da cabine. O que me fez pensar: - é, o cara é diferenciado mesmo.

Ele se despediu do senhor do lanche acertando a conta. Ligou o caminhão e partiu no sentido de Miracema. Eu ainda fiquei uns bons minutos até aparecer uma Van que me levasse até a capital. Durante o trajeto enquanto o som do Motorhead ecoava nos meus ouvidos. Não parava de pensar na conversa que ouvirá a pouco. Era animador saber que aquele caminhoneiro estava levando consciência de classe pelas estradas desse país. Quantos mais como ele não haveria. Em outros espaços também. Ai disse para mim mesmo: - É, nem tudo está perdido, nem tudo está perdido.

Por Pedro Ferreira Nunes – Poeta, Escritor e Educador Popular. Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. 

sábado, 29 de maio de 2021

Aprendendo com as Plantas ou Como um jardim pode nos resgatar do mundo digital

Se antes da pandemia já vivíamos de cara enfiada nas telas. Com a pandemia então, fomos empurrados mais ainda para esse mundo. Não tivemos como escapar seja a trabalho, estudo, acesso a serviços ou lazer. No entanto, não precisou mais do que 1 Ano de pandemia para percebermos que o ritmo do mundo digital é humanamente impossível de acopanhar.

O esgotamento físico e mental de pouco mais de 1 ano de atividades remotas é visível. Tanto que já não se tem mais nem paciência para lives artísticas que viraram moda na pandemia. Uma amiga um dia desses comentando sobre o assunto disse que já não suportava mais ouvir a palavra live. Ela não é a única, certamente. Mas o fato é que não há muito para onde fugir. Enquanto durar a pandemia, e mesmo após, continuaremos usando esses recursos – que já não são uma opção, mas uma obrigação (inclusive deve ser ensinada na escola como uma das 10 competências gerais da BNCC). 

Nesse contexto o que fazer para preservarmos nossa sanidade? O que fazer para não perdermos nossa essência? O filósofo Sul-Coreano Byung-Chul Han propõem uma espécie de um retorno a natureza através do cultivo de um jardim.

O primeiro ponto para o qual Han nos chama atenção é para questão do tempo. No jardim tudo se passa mais lentamente, o que exige da nossa parte paciência. As flores vão se desenvolvido de acordo com cada estação, no seu tempo. A nós cabe criar as condições para que isso se dê. Aí  entra outro elemento importante que é o cuidado. 

Han salienta que trabalhando no Jardim ele não só passou a ter uma nova noção do tempo. Como também aprendeu a ser menos egoísta ao ter que dá assistência, a cuidar. Com isso para o nosso filósofo aquele ambiente também tornou-se um lugar de amor.

Voltando a falar sobre o tempo no Jardim, Han salienta um aspecto importante que é o fato de que cada planta possuí a sua própria noção de tempo. E elas se desenvolvem a partir daí. Por mais semelhança que elas venham a ter. O fato é que uma planta que floresce no inverno tem uma noção do tempo diferente daquela que floresce no verão. 

Para Byung-Chul Han, ao contrário das plantas, temos perdido a noção de tempo e nos tornado atemporal, pobres de tempo. É possível perceber isso em falas como: - não temos tempo a perder. Ou – tempo é dinheiro. Isso vai na linha contrária de quem trabalha com a terra, onde a espera e a paciência são virtudes necessárias, sobretudo por que ali prevalece a incerteza.

Para Han, na cultura digital somos atrofiado, reduzidos a números. As amizades nas redes sociais, por exemplo, são numeradas. – Ah, eu tenho tantos amigos no facebook. Mas será que amizade são números? Não. Nos diz Han: - “Amizade é uma história”. E história é uma narrativa. 

Para Han uma característica da cultura digital é a supervalorização da numeração e da contagem. Em contrapartida a narrativa perde a sua relevância. A contagem permite que tudo seja traduzido para linguagem do desempenho e da eficiência. De modo que se na cultura digital não pode se torna contável, então não existe. No entanto,  nosso filósofo diz: - “ser é narrar e não numerar”.

Retornando ao jardim, Han nos chama atenção para mais um aspecto importante – o silêncio. No Jardim o silêncio prevalece. Ao contrário do meio digital onde o ruído da comunicação é intenso, pois cada um quer dizer algo – quer dizer mas, não quer ouvir.

Han nos diz que a digitalização não só acaba com o silêncio como também “com o tátil, o material, os aromas, as cores perfumadas, especialmente a gravidade da terra. Nosso filósofo nos recorda que “a palavra humano vem de húmus, terra”. Ele nos diz: “- A terra é o nosso espaço de ressonância, que nos enche de alegria. Quando deixamos a terra, a felicidade nos deixa.” 

Pode parecer romantismo, mas quem tem essa relação com a natureza compreende as palavras de Han. Aqui, na minha visão,  não se trata de rechaçar a cultura digital, mas sim de não nos deixar ser reduzido a sua lógica. É preciso utilizá-la e não ser utilizado por ela. Como fazer isso? Cultive um jardim.

Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. Atua como Professor da Educação Básica no CENSP-Lajeado.