sábado, 25 de fevereiro de 2023
Na grota do angico
segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023
Ensaio: Uma história de Desamor de carnaval
- Você veio né? Pensei que não viria. Me disse que não gostava de carnaval!
- Achei também que não viria. Bom, não é que não gosto de carnaval, não gosto desse carnaval aqui. Mas como dizem – si não tem tu, vai tu mesmo.
- Preciso conversar contigo.
- De novo Luna? Não já conversamos tudo que tínhamos que conversar da última vez?! O que você tem pra me dizer hoje de diferente? Vai se divertir com teus amigos que vou me divertir com os meus. Outro dia quem sabe não conversamos?
- Como assim? Que conversar outro dia que nada!!! Quero conversar contigo agora e vamos conversar agora!!!
- Me desculpe, mas hoje não estou afim. Vim aqui para me divertir, só para me divertir.
- John. Quero conversar contigo agora. Você escolhe ou aqui no meio da multidão ou num lugar mais tranquilo.
- Ok, ok. Não precisa dar pití no meio do povo.
- Não estou dando pití. Apenas quero conversar contigo.
- Vamos lá.
John percebeu que Luna já havia tomado muita cerveja. Aquele jeito agressivo não era muito comum da parte dela, sobretudo com ele. Por tanto não era bom como se diz por aqui “cutucar onça com vara curta”.
- Por que você não me procurou mais. Se eu soubesse que tú viria, eu viria contigo para o carnaval.
- Luna a gente não tem mais nada meu. Siga a tua vida e eu sigo a minha.
- Como assim a gente não tem mais nada. Que nada meu!!! Eu que digo quando termina e só termina quando eu quiser. Gritou Luna apontando o dedo para o rosto de John.
- Pô meu não precisa gritar aqui. Ora se eu não quero tú vai me obrigar a ficar contigo?
- Não quero saber. Só sei que você não vai me usar e me jogar fora. Nós só vamos terminar quando eu quiser terminar contigo. Você tá achando o que? Que sou um brinquedo? Eu ti mato. Eu acabo com tua vida.
- Acho que você bebeu de mais hoje. E desse jeito não dá pra conversar mesmo. Você esta querendo briga e eu não sou de briga.
- Se você não quer briga então não fica me esnobando, me tratando como um lixo.
John sorriu gostosamente, como se tivesse si divertindo com aquela situação:
- Você tá louca meu. Você não precisa disso, pode ter o homem que quiser a teus pés. Pra quer insistir numa estória que já deu o que tinha que dá há muito tempo?!
De repente o estado de espirito de Luna mudou. Ela tomou consciência de que não havia razão para agredir John daquela forma. Não seria através de violência que ela o convenceria a ficar com ela, pelo contrário, conhecendo o John como ela conhecia sabia que aquela postura dela só o afastaria mais.
- Não faça isso comigo. Não seja cruel John.
Percebendo que Luna havia se acabado John lhe passou um sermão:
- Ora, onde você está com a cabeça para me ameaçar de morte? Não estou acreditando nisso. Você só pode está maluca.
- Eu gosto de ti John, eu ti amo. Você sabe que sou incapaz de fazer qualquer coisa de mal contigo. Me desculpe pelo que eu falei, mas não me deixe, não me deixe.
John não falou mais nada, Luna também ficou em silêncio. Ele não sabia o que dizer, ela também já não sabia o que falar. Ela seguiu para um lado e ele foi para o outro – não falaram mais uma palavra se quer. John foi para casa, trancou-se no seu quarto, preparou uma dose de conhaque com gelo, preparou um tabaco, fez um cigarro e fumou enquanto ouvia uma velha canção na voz de Osvaldo Montenegro.
“Quem vai dizer ao coração, que a paixão não é loucura, mesmo que pareça insano acreditar, me apaixonei por um olhar, por um gesto de ternura, mesmo sem palavra alguma pra falar, meu amor à vida passa num instante, e um instante é muito pouco pra sonhar.”
John não tinha dúvida, aquela fora a última vez que conversara com Luna. Ela não o procuraria mais, ele também não. Tudo havia acabado naquela noite de carnaval, com aquela discussão. Tudo não, pois ele continuaria amando-a. Pois como dizia a canção “quando a gente ama, simplesmente ama’’.
Por Pedro Ferreira Nunes – um rapaz latino americano que gosta de ler, escrever, correr e ouvir Rock in Roll.
quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023
Verdades submersas no tempo ou sobre o que é a vida
Quando assisti o filme pela primeira vez me lembro ter sido afetado sobretudo pelo recorte que a obra trás da ditadura Cívil-Militar. Creio que isso se deu pelo fato de ser esses um dos períodos da história do Brasil que mais me atrai. E da identificação que tive com o personagem Hermes (interpretado pelo Carlos Alberto Riccelli) – um militante contra o regime ditatorial – fugindo da perseguição política. Com o tempo o meu interesse pela obra não diminuiu e fui percebendo outras nuances.
A história do filme se desenvolve em torno da memória da personagem Ana Paula (vivido no presente pela atriz Beth Goulart e na adolescência por sua filha Vanessa Goulart). Com isso a narrativa é perpassada por dois tempos histórico: O presente e o passado. O presente é o ponto de partida quando Ana Paula retorna a uma propriedade rural da família localizada no município de Dois Córregos no interior paulista. E esse retorno a um lugar que marcou sua adolescência trará lembranças que lhe afetará profundamente. Então, somos levados ao passado, quando Ana Paula chega naquele lugar acompanhada da amiga Lydia (personagem de Luciana Brasil) para uns dias de descanso.
A presença dos militares na Estação da pequena Dois Córrego mostra o contexto histórico que estamos vivendo. O que ficará mais evidente através das lembranças do Hermes. Tendo os seus direitos políticos cassado, acaba sendo convencido por um amigo a ingressar na luta armada contra a ditadura Civil-Militar. Ele entra na clandestinidade e é obrigado a se afastar dos filhos. Fugindo da perseguição dos militares se refugia naquela propriedade rural que pertence a sua irmã. A lembranças das crianças e dos seus companheiros de luta o atormentam dia e noite. E ele não vê a hora de reencontrar os filhos de quem já não lembra dos rostos. Mesmo não concordando com as escolhas de vida do irmão, a mãe de Ana Paula, o deixa se refugiar ali. E ainda manda sua empregada para servi-ló.
Teresa (personagem de Ingra Lyberato) foi criada pela mãe de Ana Paula. É filha de uma ex-empregada que tivera um caso com Hermes. Tornou-se uma espécie de governanta da família por quem Ana Paula tem um grande carinho. Enquanto cuida do sítio durante a permanência de Hermes por ali. Acaba se envolvendo com um militar casado, com quem se encontra quando vai até a cidade buscar algum mantimento.
Esses personagens se encontram então nesse lugar. E apesar do pouco tempo que iram conviver no mesmo ambiente. Terão a vida marcada pelos acontecimentos. Focando sobretudo na personagem da Ana Paula percebemos ali um processo de passagem. De uma transição da adolescência para maioridade. Filha de uma mãe autoritária é a primeira viagem que ela faz sem a companhia dos pais. Nutre uma admiração pelo tio e encontra nele o carinho que não recebe da mãe. Ele num primeiro momento recua diante da semelhança física de Ana Paula com sua mãe, com quem nunca teve uma boa relação. Mas depois se aproxima. Em Lydia, Hermes recorda de um amor de outrara. Filha de militar Lydia está tendo possibilidade de viver uma experiência longe do olhar rígido do pai. Elas não sabem exatamente por que Hermes está se escondendo. Mas diante do contexto político do qual não estão alheias, suspeitam. Teresa por sua vez foi criada para servir. E serve a todos com muita satisfação. Vive uma relação frustrada com um homem que não a assume. Ela então se aproximará de Hermes. Ele também corresponderá e com isso vislumbraram construir uma vida juntos.
É interessante observar como a narrativa é construída e a riqueza de cada personagem. Indivíduos de diferentes origens, personalidade e história. Que na convivência do dia a dia vão construindo laços. Laços fundamentais para que sobrevivam numa realidade melancólica. Tão bem delineada pela trilha do Ivan Lins.
Quando tudo parece caminhar para uma certa direção. Tal como uma tragédia grega, acontece algo que muda o destino de todos. Ou melhor, que os trás de volta a realidade. Hermes a sua condição de fugitivo, Teresa de serviçal, Ana Paula e Lydia de filhas de uma família conservadora. Anos depois Ana Paula retorna aquele lugar e busca as reminiscências daquele tempo. Essas reminiscências mostra a ela o que é a vida – ou seja, verdades submersas no tempo.
Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. Atualmente atua como Professor da Educação Básica no CENSP-LAJEADO.
sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023
A palestra
A palestra foi previsível. Seguindo a lógica do discurso liberal da moda que faz uma apologia da autoexploração. Isso com uma estratégia de comédia stand-up que capitura a atenção do público e truques psicológicos que leva a platéia a ter um comportamento de massa. Em “Psicologia das massas e análise do Eu” Freud, a partir de Le Bon, descreve a massa como algo “impulsiva, volúvel, e excitável”. Para que isso ocorra é necessário um líder. E consciente disso, Tudy Vieira se comporta como tal.
Nesse sentido uma estratégia adotada por ela é compartilhar sua experiência pessoal e falar a linguagem do seu público. Quem melhor para nos liderar do que alguém que é exemplo de sucesso, que venceu uma vida de dificuldade, que fala como nós?! Logo se estabelece uma relação de confiança que se o líder mandar os seus seguidores fazer algo, farão sem questionar.
Pronto. Ai temos o cenário perfeito para que ela possa dar o seu show. E despejar um monte de asneiras que serão acatadas como verdade pelo público presente. Apesar da fala agradável o discurso é claro: “aconteça o que acontecer. A culpa é sempre sua. Por tanto para de reclamar e faça.” Tudy parece se esquecer que vivemos em sociedade – e que essa sociedade se organiza de determinada forma gerando desigualdade. E ao contrário do que ela pensa não é por falta de vontade que muitos não saem de uma condição de miséria. No fundo ela tem consciência disso. Sabe muito bem que ela é uma exceção. Mas o importante é que as pessoas introjete esse discurso e se tornem conformistas. Que se autoexplorem e acreditem, como diz Byung Chu Ha, que isso é realização.
Um dos momentos mais interessante da palestra foi quando alguém perguntou-a sobre depressão. Inicialmente ela tentou fugir da pergunta dizendo que a mesma deveria ser respondida por um especialista na área. Mas para não deixar a pessoa sem resposta disse que o que causava essa doença é a falta de vontade por parte das pessoas – a preguiça em mudar. Reafirmando assim o seu discurso de responsabilizar unicamente o indivíduo pelos seus infortúnios.
É importante destacarmos que um dos motivos do aumento da depressão no contexto atual é justamente esse tipo de lógica que leva a uma frustração do individuo. Nesse sentido é importante lembrar de uma fala do filósofo e professor Vladimir Safatle sobre a depressão no programa Café Filosófico – onde ele aborda justamente os ideais empresariais de si.
Para Safatle a depressão nada mais é do que uma situação em que o indivíduo chega numa conclusão onde não tem mais força, não tem mais potência, não consegue mais. Quando isso ocorre entra então o discurso da Tudy Vieira e companhia, culpabilizando o indivíduo pelo fracasso. Para Safatle essa lógica produz uma implosão depressiva – onde o indivíduo não consegue mais enunciar desejo algum. Por isso para ele a depressão é uma das maneiras mais astuta de sujeição social.
Percebem o quão essa lógica do discurso da Tudy é nociva?! E o pior é ver ele ser introduzido na educação. Aliás, a palestra foi justamente para os servidores da educação do Lajeado. Onde tivemos um anúncio de uma parceria com o Sebrae que irá trabalhar educação empreendedora na rede Municipal. Mas essa realidade não é só aqui. Em Palmas também vimos esse movimento. E em outros municípios também. Com isso a escola pública, e por conseguinte a educação, que sempre teve os seus limites, agora vai se tornar um espaço de produção de indivíduos frustrados (mais do que já são), conformistas e depressivos. Por isso concluímos dizendo: Ai de nós, Ai de nós. Menos Tudys e Sebraes. Mais humanidades.
Por Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos .
domingo, 5 de fevereiro de 2023
Resenha: Jeff Beck e Johnny Depp - 18
Capa do disco |
Famoso por interpretar entre outros personagens icônicos no cimena – o Capitão Jack Spirrow – Johnny Depp juntamente com o guitarrista Jeff Beck – lançou o álbum 18. Composto por canções originais e releituras de outros artistas temos um trabalho de qualidade ao contrário do que nos tenta fazer crer algumas análises preconceituosas. Entre os destaques está a balada “This is a Song for Miss Hedy Lamarr” (com letra de Depp e música de Beck), a releitura de “Isolation” de John Lennon e “The Death & Resurrection Show” da banda Killing Joke.
É importante ressaltar que a relação de Johnny Depp com a música não é de agora. Há alguns anos ele faz parte da banda Hollywood Vampires, ao lado de lendas do rock como Alice Cooper e Joe Perre (guitarrista do Aerosmith). Na banda – que além de cover também tem composições próprias – Johnny Depp toca guitarra base e assume os vocais em algumas canções.
Se voltarmos ainda mais no tempo encontraremos Depp antes da fama, tocando guitarra na banda Rock City Angels – antes dele fazer sucesso em hollywood em filmes como “Edward - mãos de tesoura”, “A lenda do cavaleiro sem cabeça”, “Alice no país das maravilhas” e na franquia “Piratas do Caribe”.
O amor de Depp pela música, em especial pelo Rock também pode ser visto na relação de amizade e admiração que ele nutre por figuras como a cantora Patti Smith e o guitarrista da banda Rolling Stone – Keith Richards.
Jeff Beck por sua vez dispensa apresentação para quem minimamente aprecia rock in roll. Na ativa desde a década de 1960, foi considerado um dos maiores guitarrista da história. Tendo participado da clássica banda inglesa Yardbirds e construido uma carreira solo respeitável, ele certamente não colocaria o seu nome num projeto qualquer.
Creio que o disco teria tido uma melhor recepção se não fosse as polêmicas envolvendo o nome de Depp. Sobretudo as acusações de violência doméstica que devastou a sua vida e o tornou uma “persona non grata” em Hollywood. E assim, mesmo que em 2022, ele tenha tido decisões favoráveis nos tribunais contra tais acusações, parte da opinião pública boicota deliberadamente os projetos em que seu nome esteja envolvido.
Algumas críticas são bem desonestas como no caso da assinada por Felipe Branco Cruz na coluna “Som e fúria” da Revista Veja.
De acordo esse crítico, Depp faz mais pose do que música. Salientando o seu desempenho como guitarrista. No entanto, no álbum 18 a performance principal do nosso artista é no vocal e na composição. Por tanto uma crítica honesta deveria ser focada no seu desempenho enquanto cantor e compositor e não como guitarrista. E mesmo como guitarrista, Depp toca guitarra base. E como tal desempenha muito bem o seu papel. De modo que o crítico parece não entender muito bem de música.
A conclusão do Felipe Branco Cruz é a seguinte: “não dá para dizer que Johnny Depp não sabe tocar guitarra, mas daí a afirmar que ele é um bom guitarrista há uma distância muito grande” (https://veja.abril.com.br/coluna/o-som-e-a-furia/a-nova-e-barulhenta-aposta-de-johnny-depp-apos-barraco-com-ex/). Ora, onde está a crítica ao álbum 18?
O equívoco desse tipo de crítica está no fato de que ao invés de analisar o produto, faz uma crítica pessoal ao artista. Ora, esse deve ser criticado pelo seu desempenho na obra analisada e não por outra coisa que não tem nada haver. Se o que se pretende é analisar o desempenho de Depp como guitarrista o mais honesto seria focar na sua performance na Hollywood Vampires e não na sua parceria com Jeff Beck no álbum lançado.
Mas enfim. O fato é que independente das críticas a parceria de Johnny Depp e Jeff Beck produziu um dos melhores álbuns de rock in roll de 2022 (inclusive indicado ao prêmio de álbum do ano pela Brit Awards e avaliação positiva de 96% no Google). O nome que faz alusão ao espírito de juventude que os tomou quando se encontraram pode ser sentido sobretudo nas performances ao vivo na turnê realizada em 2022 onde percebemos os dois se divertindo, acompanhados de músicos excepcionais, com destaque para baixista – Rhonda Smith e a baterista – Annika Niles.
Por fim, outro motivo que faz desse álbum algo especial foi a morte, no dia 10 de Janeiro de 2023, do lendário Jeff Beck. Fazendo assim com que 18 fosse o seu último trabalho lançado em vida. Há um registro de um excelente cover de “Gimme some truth” do John Lennon, compartilhado no instagram do Johnny Depp, que não saiu no álbum. O que pode ser indício de que há material registrado para mais um trabalho da dupla. Aguardemos. Por enquanto, apreciemos esse excelente trabalho que nos legaram.
Por Pedro Ferreira Nunes – um rapaz latino americano que gosta de ler, escrever, correr e ouvir Rock in roll.
segunda-feira, 30 de janeiro de 2023
Resenha: As Tocantinas, do Célio Pedreira
Aliás, o que falar de “As Tocantinas” depois do que escreveu Pedro Tierra? Concordo totalmente com o que ele fala a respeito da influência do Manoel de Barros na poesia do Célio Pedreira. No decorrer da leitura isso fica muito evidente. Assim também o que Tierra chama de exercício temerário da língua. É desse exercício que o poeta vai construindo as imagens que a Carolina Pedreira chama atenção na sua apresentação da obra. Eu acrescentaria também um vocabulário que remete as raízes tocantinense com a inserção de palavras como: arrancho, gamela, furupa, bulandeira, loca entre outros.
As Tocantinas não é a primeira obra desse médico, professor, escritor e poeta tocantinense que nasceu nos idos de 1959 na histórica cidade de Porto Nacional. Na sua bibliografia consta Porta (2003), Porto Transversal (2008), Raimundo (2012) e Um poema catedral uma canção (2005). Todos de poesia, sendo este último em parceria com Elizeu Lira. Na prosa consta Agudas e crônicas (2007) e três cartas para Maria Isabel (2009). Também em parceria com Elizeu Lira (entre outros) tem o cantigas da claridade (2005) e ainda Saúde e Comunidade (2015).
As Tocantinas foi publicado em 2014 pela editora da Universidade Federal do Tocantins (EDUFT). E trás 100 poemas que retratam a relação do poeta com suas origens, reconstruindo memórias e vivências no sertão tocantinense. Tudo isso construído numa espécie de trabalho artesanal com a língua que culmina em imagens que nos ajuda a compreender um pouco mais das nossas raízes culturais. Um exemplo nesse sentido é o poema bulandeira:
O braço
rompe a roda
a roda
vira o ralo
o ralo
na raiz da fome
farinha.
Numa primeira leitura me pareceu não muito palatável. De modo que não recomendaria para quem não tem um certo nível de leitura – que compreenda o exercício da língua feito pelo poeta na construção dos seus poemas. Apesar de serem poemas curtos é necessário um tempo para digestão de cada um. No exemplo acima o poeta fala de um instrumento (bulandeira) utilizado no processo de transformação da mandioca em farinha – um alimento fundamental na culinária sertânica. Na verdade a questão que o poema trás não é a bulandeira em si, mas a lembrança de algo que já se foi, talvez a infância, já que com a modernização isso é coisa do passado na produção de farinha. Além desse olhar saudoso para o passado há aqueles que descreve paisagens tipicamente interioranas como o rio, grotas, serras, luar, ruas, casas ou como no poema a seguir, os pés de manga:
Fiel aos quintais
quanto mais sem dono
mais anda igual
na boca dos homens
e dos porcos.
Oásis soberano
no solapino
lugar de arvorar-se.
Verde praticável
no estio
ou festejando chuva.
Paciência índia
nesses trópicos de machado.
São muitos poemas. Não destacaria alguns, mas a obra completa (Os dois que destaquei acima foi apenas para ilustrar minha fala). Aqueles que se interessarem pela leitura, além da versão impressa comercializada pela EDUFT, há versões em pdf que podem ser baixadas gratuitamente na Internet.
Como leitor não vou dizer que a obra tenha me afetado tal como “O Porto submerso” do Pedro Tierra – nosso poeta maior. Ou outros poemas de poetas que produzem literatura no Tocantins como o J.J Leandro. Confesso que até me decepcionei um pouco. Pois esperava mais, sobretudo por que já havia lido antes algumas crônicas desse autor no jornal do Tocantins e as achei excelentes. Talvez o erro do poeta, na minha visão, tenha sido o de ter tentando imitar o Manuel de Barros. O estilo do Manuel é inimitável. De modo que me pareceu um tanto forçado e transformou sentimentos genuinos em poemas pouco tragáveis. Pelo menos numa perspetiva popular.
Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. Atualmente atua como Professor da Educação Básica no CENSP-LAJEADO.
quarta-feira, 25 de janeiro de 2023
O lugar da Filosofia e das Ciências Sociais nas trilhas de aprofundamento do Novo Ensino Médio no Tocantins
Uma das críticas que se faz ao chamado Novo Ensino Médio é a redução do espaço dado as humanidades. Prejudicando a formação de uma consciência crítica e humanista. Nesse sentido não custa lembrar que até cogitou-se a retirada da Filosofia e da Sociologia da grade curricular de ensino – o que não ocorreu após muita resistência de estudantes e professores. Continuou, porém não mais como um componente curricular obrigatório. Além disso História e Geografia perderam carga horária presencial. Nesse contexto é fundamental compreendermos essa nova dinâmica para dispultarmos os espaços criados (itinerários formativos e trilhas de aprofundamento) – recolocando a Filosofia e as Ciências Sociais no seu devido lugar, ou seja, na base do processo formativo.
Implantação do Novo Ensino Médio
No Tocantins, a implantação do Novo Ensino Médio teve início no ano letivo de 2022 com os itinerários formativos nas 1° séries e na Educação de Jovens e Adultos (EJA) Terceiro Segmento. Esses itinerários formativos consistia no Componente Curricular de Projeto de Vida e em disciplinas eletivas.
Em relação as disciplinas eletivas, o estudante deveria cursar 1 (da sua escolha) semestralmente. Por tanto caberia a escola disponibilizar um cardápio com opções para que ocorresse essa escolha. Esse cardápio poderia ser construindo tanto com eletivas organizadas pela Seduc-TO como por eletivas elaboradas pelos próprios professores de uma determinada escola. Quanto a escolha dependeu muito do tamanho da unidade de ensino. Um ponto de atenção que observamos nesse processo é o risco de que essa escolha não aconteça. Com isso as eletivas são empurradas goela abaixo dos estudantes. Ai então a tão propagandiada liberdade do estudante na construção do seu itinerário formativo vai para o ralo. Isso também serve para as trilhas de aprofundamento.
Nesse novo contexto o componente curricular de Projeto de Vida passa a ter um peso considerável, com uma carga horária semanal de 3h, sendo 1h não-presencial. E tendo como objetivo desenvolver competências e habilidades voltadas sobretudo para o autoconhecimento e o autocuidado, ajudando o estudante a direcionar o seu processo formativo para um determinado objetivo de vida. De modo que os demais componentes curriculares devem se organizar a partir daí.
Essas mudanças significou o aumento da carga horária do Ensino Médio. E para encaixar tudo isso no horário regular criou-se então as aulas não-presenciais. Não só no componente curricular de Projeto de Vida como falamos acima. Mas outros componentes curriculares como Português, Matemática, História e Biologia tiveram sua carga-horária presencial reduzida. Já o funcionamento dessas aulas não-presenciais requer uma avaliação séria sobre a sua efetividade. Sobretudo com o uso dos roteiros impressos.
Outra novidade foi a criação da figura do Coordenador de Área, responsável por coordenar as ações desenvolvidas pelas áreas. Partindo da ideia de que a formação básica agora não é mais por componente curricular mas por área, essa figura tem um papel fundamental para garantir que isso funcione na prática. Isto é, garantir que todas as ações no contexto do Novo Ensino Médio, tenha uma perspetiva multidisciplinar. E a sua importância vai aumentar a medida que for avançando a implantação das trilhas de aprofundamento nas 2° e 3° séries. Pois a forma com que será desenvolvida as trilhas de aprofundamento, caberá ao coordenador de área fazer a articulação e ajustes necessários entre os professores que irão trabalhar uma determinada trilha.
As trilhas de aprofundamento
Como o nome sugeri as trilhas de aprofundamento vem para dar continuidade ao processo anterior. Parte-se da ideia que o estudante adquiriu um conhecimento sobre o seu objetivo de vida que lhe permite dar um passo maior em direção ao mesmo.
As trilhas foram elaboradas pela Seduc-TO no contexto do Documento Curricular do Tocantins (DCT). Mas os estudantes, em tese, continuam com o poder de escolha. A partir de uma análise da instrução normativa n° 10 de 19 de Dezembro de 2022 e com alterações de 18 de janeiro de 2023, podemos dizer que essa escolha se dará por área. Ou seja, cada área tem um cardápio de trilhas e os estudantes deverão optar por uma dessas. No entanto, um aspecto a se ressaltar é que se o estudante optar por uma trilha de linguagens, não quer dizer que ele só terá aula de componentes curriculares da área de linguagens. Como assim? Explico.
As trilhas serão divididas em módulos. E pode ser que num determinado módulo de uma trilha de Matemática seja trabalhado por alguém da Área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Para ficar mais claro peguemos um exemplo da modulação indicada pela instrução normativa n°10/2022.
A trilha de aprofundamento “Nutrição e qualidade de vida: cuidado do corpo e da mente” é da Área de Ciências da Natureza e suas tecnologias. No entanto, ao longo dos seus 10 módulos, alguns poderão ser ministrados por alguém da Educação Física, da Geografia, da Sociologia e da Filosofia. São vários exemplos nesse sentido. Desse modo, percebemos que a maioria das trilhas são integradas com um ou mais componente curricular. Ou com uma, ou mais área. Vejamos outro exemplo: A trilha “clube dos Literatos Juvenis” é da Área de Linguagens, mas ao longo dos seus módulos temos Sociologia e História que são da Área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.
Tem algumas exceções, como por exemplo, na área de Matemática a trilha “Modelagem Matemática aplicada à vida: construindo o saber matemático a partir das relações sociais”. Não tem outro componente curricular a não ser matemática. O que na nossa avaliação é um equivoco pois falar em saber e relações sociais sem filosofia e sociologia não dá. Eis ai um ponto que cabe uma problematização maior e nos leva ao nosso problema sobre o lugar da Filosofia e das Ciências Sociais nas trilhas de aprofundamento. Mas deixemos para adiante essa questão. Antes é importante destacar que há uma diferença na carga-horária das trilhas, isso por que a da 2° Série é menor do que a da 3° Série). Além disso os estudantes das 2° e 3° séries continuaram com o Componente Curricular de Projeto de Vida, mas apenas com 1h/a semanal. E as eletivas no mesmo esquema das 1° séries. Inclusive poderão cursar uma eletiva juntamente com estudantes de outra série ou turma que não a sua de origem. Na 3° série não haverá os componentes curriculares de Arte, Filosofia e Sociologia. No entanto, os mesmos poderão ser abordados nas trilhas, eletivas e projeto de Vida.
O lugar da Filosofia e Ciências Sociais nas trilhas de aprofundamento
Num primeiro olhar podemos ressaltar que o lugar da Filosofia e das Ciências sociais (Geografia, História e Sociologia) vai para além da Área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Percebemos a presença desses componentes curriculares nas trilhas de aprofundamento das demais áreas. Como também tem a presença de componentes curriculares de outras áreas nas trilhas das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas – uma integração que já estava prevista nas disciplinas eletivas. Mas que com as trilhas há uma organização mais fechada.
Essa organização mais fechada, por um lado garante que a integração ocorra de fato. Por outro lado coloca uma espécie de tutela limitante. Pois pensando a partir da Filosofia e das Ciências Sociais percebemos que os módulos onde somos chamados a cooperar não são os adequados. Vejamos três exemplos nesse sentido:
Na trilha “AMPLIFICA! A linguagem em movimento”, a História que deveria ser o ponto de partida ou um ponto intermediário, é o último, o que fecha a trilha. Também caberia um módulo para falar da Filosofia da linguagem. Na trilha “agronegócio e Agricultura Familiar” nos parece óbvio que o ponto de partida é a Sociologia e não Química ou Biologia como proposto. Na trilha “Contribuições da matemática para o mundo digital” o ponto de partida é uma questão filosófica sobre o que é a matemática e o que é o mundo digital, cabendo assim como ponto de partida um módulo de Filosofia da Matemática.
Outra questão são as trilhas que seria fundamental um módulo para Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, que não há. Como no exemplo que trouxemos da trilha da Área de Matemática Modelagem Matemática aplicada à vida: construindo o saber matemático a partir das relações sociais”.
Pode parecer corporativismo, mas creio que todas as trilhas de aprofundamento, independente da área, requer necessariamente pelo menos um módulo sob responsabilidade de alguém com formação na área das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (Filosofia, Geografia, História e Sociologia). Pois é impossível o aprendizado do que quer que seja sem levar em consideração os aspectos filosóficos, sociológicos, históricos e geográficos). Peguemos por exemplo um curso universitário, independente da área de formação certamente haverá um módulo sobre ética e de fundamentos histórico-sociológico. Ora, sem a presença de uma dessas perspectiva de conhecimento não podemos falar na formação de uma consciência crítica voltada para o exercício da cidadania.
Com isso concluímos ressaltando que a organização atual das trilhas de aprofundamento da Rede Estadual de Educação do Tocantins deve ser repensada. Sobretudo em relação ao lugar da Filosofia e das Ciências Sociais. Não podemos aceitar um processo de ensino-aprendizagem que relega para as humanidades uma posição terciária na grade curricular de ensino. Sobretudo num contexto de desumanização crescente, ataques a democracia e aos direitos humanos.
Pedro Ferreira Nunes – Educador Popular e Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. Atualmente atua como Professor da Educação Básica no CENSP-LAJEADO.
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