quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Olimpíada Nacional de Filosofia e o fortalecimento do seu Ensino

O ensino de Filosofia na educação básica passou por um período de ataques nos governos anteriores. Ameaçada inclusive de ser retirado da grade curricular do ensino médio. Algumas redes estaduais inclusive diminuíram a carga horária desse componente curricular na formação geral básica. No entanto, conseguimos resistir e avançar no sentido do seu fortalecimento. Uma das ações nesse sentido é certamente a Olimpíada Nacional de Filosofia.

Anualmente diversas áreas promovem olimpíadas escolares, as mais tradicionais são a de Matemática e Língua Portuguesa. E o que nós percebemos no chão da escola é que são iniciativas importantes para o fortalecimento desses componentes curriculares na educação básica. Além de reconhecer e premiar estudantes destaques - o que também traz reconhecimento para professores e toda a comunidade escolar.

Na área da Filosofia temos a nível mundial a olimpíada internacional (IPO) que em 2024 chega a sua 33ª edição. E é dessa competição que se origina a Olimpíada Nacional de Filosofia (ONFIL) - que inclusive funciona nos mesmos moldes. O estudante deve elaborar um ensaio filosófico a partir de um tópico, escolhido entre quatro (que ele irá conhecer apenas no momento de realizar a prova num local específico) digitada num computador sem internet cedido pela organização.

Ou seja, uma prova extremamente desafiadora, onde o estudante sem nenhum auxílio, a não ser do seu conhecimento, deverá compreender o tópico e elaborar um texto acerca do mesmo.

Os idealizadores da ONFIL são os professores Gustavo Coelho (CIB) e Mitieli Seixas (UFSM). Tendo como instituição promotora a Universidade Federal de Santa Maria em colaboração com dezenas de instituições de todas as Unidades da Federação. E conta com o apoio do MCTI e do CNPq. O objetivo segundo os organizadores é fortalecer o ensino de Filosofia, que por sua vez promove a tolerância, grandes ideias, argumentação e oportunidades - pois “Olimpíadas do conhecimento promovem experiências únicas e abrem portas nas maiores universidades do Brasil e do mundo”.

É diante disso que nós que atuamos com o ensino de Filosofia no chão da escola recebemos com muita alegria essa iniciativa. E fizemos todo o esforço para promovê-la como também no incentivo para que nossos estudantes participassem.

A primeira etapa das olimpíadas ocorreu no mês de junho e contou com mais de 500 estudantes inscritos. A priori pode parecer um número reduzido, mas por questões estruturais a organização limitou o número de vagas por unidades da federação e unidades escolares. Por exemplo, para o Estado do Tocantins, que é onde estamos, foram 16 vagas, sendo que cada escola só poderia inscrever no máximo dois estudantes.

Acreditamos que essa limitação no número de vagas foi importante também para garantir uma seleção criteriosa da nossa parte. Ou seja, tivemos que escolher os estudantes mais qualificados para enfrentar o desafio proposto. No meu caso, convidei dois estudantes (Ádilla e Gabriel, 1ª e 2ª série do ensino médio respectivamente), a partir da observação do desempenho deles nas aulas de filosofia. O passo seguinte foi fazer uma breve preparação com foco na leitura de textos filosóficos e exercícios de escrita de ensaios filosóficos. Durante esse processo mais estudantes se juntaram a nós, mesmo não estando inscritos na ONFIL.

Apesar da preparação, para nós o mais importante era a participação, a experiência que esses estudantes teriam em sair da sua escola na periferia até o campus da universidade federal (que eles nunca haviam ido), conhecer pessoas novas e vivenciar algo novo - que certamente marcará suas vidas. Mas não podemos deixar de falar da nossa felicidade ao receber o resultado de que a Ádilla teve o seu ensaio como um dos premiados com uma menção honrosa e a classificação para seletiva da Olimpíada Internacional de Filosofia.

Enfim, acredito que as Olimpíadas de Filosofia contribuirá sobremaneira para o fortalecimento do ensino de Filosofia na educação básica. Essa primeira edição já mostrou que apesar dos ataques sofridos nos últimos anos o ensino de Filosofia resiste e sobrevive, mobilizando professores e estudantes de escolas públicas e privadas espalhadas por todo o Brasil - que compreendem a importância do pensamento filosófico para vislumbrarmos novas possibilidades em diferentes âmbitos da vida.

Pedro Ferreira Nunes - Professor de Filosofia na Rede Estadual de Educação do Tocantins.

sábado, 10 de agosto de 2024

Resenha: O velório de mais de vinte anos, do jj Leandro

Narrativas curtas, estórias trágicas que mostram a nossa condição de seres finitos. Com uma boa dose de humor indigesto. É o que encontramos nessa coletânea de contos do escritor Maranhense, radicado em Araguaína, jj Leandro - uma das referências na prosa ficcional produzida no Tocantins.

A coletânea foi publicada em 2023, numa edição de alta qualidade pela editora Penalux. A obra é organizada em duas partes: a primeira é denominada de contos para ler com lupa e tem 95 estórias. Já a segunda parte denominada de contos para ler no microscópio trás 102. A grande maioria tem como temática a questão da finitude, ou seja, a morte. O título da coletânea mostra bem isso - o velório de mais de vinte anos - que é um dos contos que compõem o livro. 

Desse modo, além do aspecto estético, as estórias do jj Leandro nos leva a refletir sobre uma questão incontornável da nossa condição humana - que é a morte. E assim o autor contribui para que essa temática seja discutida com maior naturalidade na nossa sociedade.

Essa bandeira tem sido levantada ultimamente por Andreas Kisser (músico e integrante da banda Sepultura) que perdeu a esposa para um câncer e a partir de então fundou o movimento Mãetricia que tem como bandeira a defesa da morte digna. Algo que, quem já passou por uma situação de luto, sabe que é necessário.

Voltando ao livro, no conto que dá título à obra o personagem é um ancião de mais de 100 anos que de repente morre após viver por muitos anos em estado vegetativo. Ou seja, alguém que já havia morrido em vida - se tornando um peso para a família. Tanto que quando morre é imediatamente enterrado. Pois seus familiares julgam já tê-lo velado por muito tempo.

Nesse conto a gente percebe uma característica da literatura do jj Leandro - o humor ácido - que nos leva da alegria a tristeza e da tristeza a alegria. Me lembrou um pouco um punk rock que nos traz verdades indigestas - difíceis de engolir. Mas, necessárias.

Assim como um punk, jj Leandro busca inspiração para os seus contos na realidade. Inclusive em episódios que marcaram nossa história recente. Por exemplo, no conto à queima roupa:

ele resolveu seguir o conselho do líder religioso e abdicar da compra do feijão para família… Melhor vender uma quinquilharias de casa e comprar pela primeira vez na vida uma arma… (pág. 35).

Com isso temos outro aspecto da literatura do jj Leandro, nessa obra. O viés político ao denunciar um discurso que nos leva a passividade, a apatia ou a violência - uma violência que se volta contra nós.

Do ponto de vista estético, temos narrativas bem construídas. Mas acredito que o ponto forte da obra é o caráter provocador - que alimenta a dúvida e nos faz pensar. Ou seja, é como se as estórias não tivessem um ponto final. Na nossa cabeça somos levados a vislumbrar outros desfechos possíveis, como no conto besta que é concluído com uma interrogação. Com isso o autor provoca o leitor a não se comportar passivamente. Mas como coautor.

Como são narrativas curtas a leitura flui rapidamente, sobretudo porque jj Leandro não tem uma linguagem complexa. É direita, lembrando novamente as letras de punk rock. A segunda parte então, mais ainda, onde alguns se resumem a uma frase como em aprendiz: 

morreu no horizonte como o sol, mas sem a certeza de voltar no dia seguinte (pág. 218).

Ou o patíbulo:

foi o lugar mais alto em que subiu na vida (pág. 217).

Enfim, não tenho dúvida em afirmar que o velório de mais de vinte anos, se coloca como uma das principais obras de ficção escrita no Tocantins, no campo da prosa. Aliás, na minha análise, jj Leandro é uma das referências quando falamos em conto, não só no Tocantins. Mas ele também já produziu outras obras entre romance e poesia. A exemplo de quase ave (2002).

O velório de mais de vinte anos, assim como outras, de outros autores publicadas nos últimos anos, mostra a força e qualidade da literatura que vem sendo produzida no Tocantins. Óbvio, como em todo lugar, tem muita coisa que carece de maior maturidade literária, sobretudo no campo da prosa. Mas tem aquelas que vão para a prateleira das referências. É o caso desse.

Pedro Ferreira Nunes - É Professor na Rede Estadual de Ensino do Tocantins e também se aventura na produção literária.

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Os afetos que circulam entre os muros das escolas III

Estamos em outra escola, aqui os professores não deixam de ter os seus traumas pessoais, as condições de trabalho não são as melhores, a valorização salarial também não – o que exige a necessidade de fazer alguns “bicos” para complementar a renda. Mesmo diante de todo esse quadro eles exercem a docência até com um certo entusiasmo, inclusive indo além, se comportando quando necessário como psicólogos e assistentes sociais, tendo em vista a condição do seu alunado. Esse alunado já tem uma certa experiência de vida, já são trabalhadores, pais, avós, e acreditam que a educação pode ser o único caminho para fugirem de uma dura realidade – dominada pela desigualdade e pela violência.


Esse é, de forma bem sucinta, o enredo do seriado brasileiro Segunda Chamada que teve a sua primeira temporada exibida em 2019 na Rede Globo de Televisão, dirigido por Joana Jabace. O seriado mostra o cotidiano numa escola da periferia de São Paulo, no período noturno com turma da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Entre os vários afetos que circulam naquele ambiente, a esperança é o que prevalece. A esperança da direção e dos professores de, através da educação, oportunizar uma condição de vida digna para os seus estudantes. E dos estudantes que buscam uma vida diferente daquela de sofrimento e privações que estão vivendo. A questão é que a esperança - que Espinoza (2014, p. 65) define como “uma alegria inconstante, originada da ideia de uma coisa futura ou passada, cuja ocorrência duvidamos até certo ponto” - sempre vem acompanhada de outro afeto, a saber, o medo – que nosso filósofo define (2014, p. 65) como “uma tristeza inconstante, originada da ideia de uma coisa futura ou passada, cuja ocorrência duvidamos até certo ponto”. 


Isso se dá por que existe o elemento da dúvida que faz com que quem é afetado pela esperança também seja afetado pelo medo. O estudante tem esperança de conseguir o que almeja, mas nada garante que de fato conseguirá, aí vem o medo. Por outro lado, nada garante que não irá conseguir, e aí vem à esperança. O problema é que se cai num círculo sem saída, um círculo que nos limita de desenvolver toda a nossa potencialidade e que pode nos levar a outro afeto, a saber, o tédio.


Pedro Ferreira Nunes – Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. Atua como Professor da Educação Básica na Rede Estadual de Ensino do Tocantins no CEMIL Santa Rita de Cássia.

domingo, 30 de junho de 2024

Como diz a letra de uma canção: “How I whish you were here...”

Imagino o que você não teria dito quando soubesse que eu teria que deixar nossa casa para ir trabalhar em outra cidade. Eu lhe convenceria da necessidade dessa mudança. Deixando claro que seria transitório. Você aceitaria com a condição de que eu não ficasse muitos dias sem ir vê-la.

No início era essa a minha intenção. Mas a rotina do trabalho, que não raramente se estende pelo final de semana, me obrigou a repensar essa questão. Mas não deixo de ir. Se você ainda estivesse na nossa casa talvez, ou certamente, fosse diferente. O difícil seria ti encontarar em casa, sobretudo no final de semana. Mas tudo bem, nunca gostei que você ficasse em casa deixando de fazer o que gostava – passear, está no movimento – ainda que para trabalhar – sua diversão era ver família e amigos se divertindo. 

Não saio muito por aqui. Além da rotina de casa para o trabalho, saio para fazer minhas corridas vespertinas e vou ao supermercado e a feira. Tudo praticamente no quintal de casa. As vezes até planejo mentalmente ir no cinema ou numa dessas casas por onde passam bandas de rock. Mas acabo desistindo. Compro algumas cervejas e fico no meu canto. Bebo, fumo, planejo, leio, escrevo e fico vendo vídeos em aplicativos da internet. Ah, também toco contrabaixo. Isso mesmo, um contrabaixo. Há muito tempo que eu estava namorando comprar um. Agora deu certo. Acretido que vou ter mais sucesso tocando contrabaixo do que a guitarra e o violão. Mas não vou me desfazer deles. 

Esses instrumentos me conectam com o adolescente sonhador dos tempos do Ensino Médio que sonhava ter uma banda de rock. Nem ti conto, esses dias encontrei uma foto do tempo do colegial com eu vestido numa camisa da minha banda (que nunca tocou). A foto foi tirada num evento do colégio sobre cultura tocantinense. E além de mim aparece o Rudinei (Neto de Dona Olga), o Adevagno (filho do seu Piauí), o Diva e a Daniela. Além da professora Kênia. Você lembra dela, né?!

Aqui onde moro é tranquilo. E não se preocupe por que não estou falando isso para lhe acalmar. Se você tivesse a oportunidade iria conferir. E provavelmente faria amizade com o povo daqui. Sobretudo com a senhora que é dona da kit net. Nunca vi uma pessoa para fazer amizade tão fácil como você. Já eu, confesso que nem cumprimento meus vizinhos.

No trabalho as coisas estão fluindo bem. Os estudantes me veem como uma espécie de Rockstar. E vivem me fazendo declaração de amor. Quanto às aulas – algumas funcionam, outras nem tanto. As vezes saio contente, outras vezes frustrado. Mas compreendi que isso faz parte. É como um concerto de banda de punk rock – nem sempre é aquele espetáculo que arrebata o público. No entanto, o show tem que continuar.

Mas o que eu queria mesmo era que você estivesse aqui. Não há um momento que eu não pense nisso. Ainda mais quando estou num lugar que sei que você iria amar como numa festa junina ou numa praia. Com isso concluo essas linhas falando o quanto sinto sua falta. Ti trago sempre dentro de mim.

Abraços ternos,

Pedro 

Ps: agora em Julho vou passar as férias na nossa casa. Cuidarei de tudo, das plantas e do quintal. Os meninos estão dizendo que viram do Goiás. Vou aguardá-los. 


terça-feira, 25 de junho de 2024

Palmas e as festas juninas ou em defesa da celebração

Creio que há poucas cidades fora do nordeste que vivem as festas juninas tão intensamente como Palmas. Acredito que isso seja reflexo da comunidade nordestina presente na capital e no Tocantins. E a maior expressão desse movimento é o arraiá da capital construído sobretudo por quem mora na periferia.

É da periferia que vem as quadrilhas que fazem o arraiá da capital ser o espetáculo que é. Mas esse é apenas o ponto de culminância de um movimento que acontece em todas as regiões da capital, em espaços como escolas, feiras livres, igrejas entre outros. Entre os nomes que se destacam estão a Cafundó do Brejo (a junina mais antiga da cidade), Matutos da Noite, Estrela do Sertão e Nação Junina.

Assim como no nordeste, esses grupos juninos se profissionalizaram e se organizam muito antes das festividades para poder apresentar o melhor espetáculo e ser reconhecido pelo público e pela crítica em campeonatos regionais e nacionais que premiam os melhores.

Não dá para negar a beleza das quadrilhas e reconhecer a importância delas para a cultura sertânica. Além de ser um espaço feito, sobretudo, pela juventude demonstrar o seu talento na música, na dança, na escrita e na moda. Em resumo, desenvolver e demonstrar a criatividade - fruir e produzir cultura.

Apesar de reconhecer a importância e beleza desse movimento confesso que ainda prefiro as quadrilhas tradicionais. Talvez porque tenho um olhar nostálgico. Me lembro da minha infância na rua Maranhão em Miracema - da baixa preta - de quando dançava quadrilha na escola. 

Entendo, no entanto, que as coisas mudam, para os nossos olhos nostálgicos nem sempre para melhor. Mas é legal ver a força desse movimento na capital. Comecei a observar isso morando no Aureny I (berço de grupos pioneiros das quadrilhas juninas em Palmas).

Foi num certo domingo do mês de abril. Ouvi gritos como numa torcida num jogo de futebol. Mas não era bem futebol. Lembrei então dos famosos grupos juninos de Palmas e fui pesquisar na internet para ver se achava alguma coisa. E encontrei uma reportagem falando que o Aureny I é berço de dois grupos: Cafundó do Brejo e Caipiras do Borocoxó. Aí então confirmei minhas suspeitas. Depois, um dia a noite, os vi ensaiando na feira coberta do setor. E então, percebi o quanto eles levam a sério. E o quanto é importante para a periferia da Capital, esquecida pelo poder público no que diz respeito a políticas de incentivo à produção e fruição cultural.

Mas também é importante para todos nós que estamos absortos no tempo do trabalho e nos esquecemos de um aspecto fundamental da vida que é a celebração. Nessa linha é importante o que diz Byung-Chul Han no seu texto “Tempo de celebração - a festa numa época sem celebração”:

“A festa é o evento, o lugar onde estamos junto com os deuses, onde inclusive nós próprios nos tornamos divinos. Os deuses se alegram quando os seres humanos jogam e brincam; os seres humanos jogam e brincam para os deuses. Se vivemos numa época sem festa, se vivemos numa época desprovida de celebrações, já não temos mais qualquer relação com o divino.”

E falando em festas juninas percebemos um caráter religioso muito forte, sobretudo ligado ao catolicismo. Não por acaso o símbolo principal é uma fogueira em homenagem a São João. Pereira Júnior, ressalta que: “Os festejos joaninos são integrantes do patrimônio cultural em seu sentido mais amplo, articulando de maneira dinâmica o trabalho e o lazer, a devoção e o entretenimento, instaurando um período particular de expressão de valores e tradições populares.” 

Ainda de acordo com este autor: “São esses movimentos de celebração, essas trocas e intercâmbios que nos permitem afirmar que há uma identidade inerente ao período joanino que atribui ao evento um caráter cultural singular, além de um lugar de memória.”

Para concluir retomemos ao Byung-Chul Han que fala sobre a importância do tempo de celebração, sobretudo num contexto atual:

"O tempo da celebração é o tempo pleno, em contraposição ao tempo do trabalho, como tempo vazio, que deve ser simplesmente preenchido, que se move entre tédio e ocupação. A festa, ao contrário, realiza um instante de elevada intensidade vital.”

Nós brasileiros compreendemos isso como ninguém. Pois somos um dos povos mais festivos do planeta. E as festas juninas são um exemplo nesse sentido ao lado do carnaval. 

Pedro Ferreira Nunes - É Professor da Educação Básica na Rede Estadual da Educação do Tocantins.

quinta-feira, 20 de junho de 2024

Os afetos que circulam entre os muros das escolas II

Estamos em outra escola, mas o ambiente de conflitos não é diferente. De um lado professores desmotivados, adoecidos mentalmente, que mal vem à hora de poderem se aposentar. Do outro lado, estudantes sem perspectivas de vida. 

É nesse cenário que chega um professor substituto que terá pela frente o desafio de encarar esse ambiente um tanto insalubre juntamente com uma vida pessoal não menos insalubre - sua mãe suicidou-se e ele acabou sendo criado pelo avô. 

Atualmente o seu avô vive num asilo, mas ele visita-o com frequência. Mesmo suspeitando que o motivo do suicídio da mãe tenha sido um possível abuso por parte do avô, ele não o abandona. Mas carrega esse trauma consigo.

Na escola percebe, sobretudo a partir do contato com uma aluna, que não é só os professores que estão adoecidos mentalmente. Ele se torna um espelho para essa aluna que está passando por um momento de muita dificuldade - em casa sofrendo abuso do pai, e na escola sofrendo bullying dos colegas por não se encaixar nos padrões de beleza socialmente impostos. O problema é que na situação psíquica que o professor se encontra ele não é lá um grande espelho. 

A situação acaba se deteriorando tanto em casa como na escola e a estudante acaba cometendo suicido.

Esse enredo descrito é do filme norte-americano Detach-ment (que no Brasil recebeu o título de “O substituto”) de 2013, dirigido por Tony Kaye – contando a experiência do Professor Barthes numa escola secundarista como professor substituto. Um ponto a se ressaltar é que o diretor do filme traz depoimentos reais de professores para dar uma ênfase maior à situação dramática da educação naquele país. 

Outro ponto é a ênfase dada ao fator externo, isto é, como os afetos que nos afetam fora da escola influenciam nos afetos que circulam entre os muros da escola. E nesse caso específico, um afeto que se sobressai é a culpa. 

De acordo com Espinoza (2014, p. 66) a culpa “é a tristeza concomitante à ideia de um feito que cremos ser produto de um livre decreto de nossa mente”. Essa tristeza limita ou diminui a nossa potência de agir e isso é bem perceptível no filme através da expressão facial tanto dos professores como dos alunos. Mas a cena que explicita isso de forma contundente é o suicídio da estudante.

Para Espinoza (2014, p. 43) “a mente deixa de afirmar o corpo por que surge uma outra ideia que exclui a existência presente de nosso corpo, e consequentemente de nossa mente, e é contrária à ideia que constitui a essência de nossa mente”. E isso pode ocorrer quando somos afetados pela culpa e não temos a capacidade defendida por Aristóteles (1991), isto é, de agir moderadamente.

Pedro Ferreira Nunes – Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. Atua como Professor da Educação Básica na Rede Estadual de Ensino do Tocantins no CEMIL Santa Rita de Cássia.

sábado, 15 de junho de 2024

Uma leitura da obra “Os miseráveis”, do Victor Hugo

Morrer é nada, minha querida. Horrível é não viver”
Victor Hugo, in Os miseráveis 


“Em nenhum outro lugar, as profundas e infinitas contradições humanas aparecem tão dramaticamente explícitas do que no campo de batalha. Talvez seja pela grandiosidade da proximidade da morte...”. Filósofa Victor Hugo num dos trechos da sua célebre obra Os miseráveis, publicada em 1862. E continua. “Será ali que a solidão esmagadora em que, ao fim e ao cabo, nascemos, em que somos confinados e em que morreremos se faz mais evidente e onde a nossa essência  (a covardia, a mesquinhez, o egoísmo e outros tantos sentimentos, destacadamente os ruins, pois, muitas vezes, a nossa benignidade é apenas a grande mentira que contamos sobre nós mesmos e para nós mesmos), nos confronta.”

Os trechos acima que abrem, digamos o terceiro ato da obra, reflete um dos aspectos da narrativa clássica do célebre escritor francês do século XIX – uma discussão filosófica sobre a natureza humana. O que nos faz imediatamente lembrar de Thomas Hobbes e Rousseau. Enquanto o primeiro acredita na maldade como inerente ao ser humano. O segundo discorda. Victor Hugo claramente concorda com o primeiro. Ainda que aponte por meio dos seus personagens, como Jean Valjean ações benevolentes. Que numa análise minuciosa são realizadas não pensando no outro, mas em si. Ou seja, são ações que acabam tendo um caráter egoísta.

Nessa linha o título da obra ganha dois sentidos. O primeiro está relacionado ao que foi dito anteriormente, ligado a nossa natureza. Já o segundo se relaciona a questão material, com a desigualdade social (que não deixa de está relacionado com o primeiro). Desse modo além do aspecto acerca da discussão da natureza humana, também temos a questão política. Que se dá, na nossa ótica, com uma discussão sobre o papel do Estado. 

Para compreender melhor essa dinâmica, Victor Hugo desenvolve alguns personagens importantes. A começar por aquele que poderíamos denominar de protagonista – Jean Valjean. Considerado um criminoso pelo Estado o que o fará ser perseguido por quase toda a vida pelo implacável inspetor de Polícia Javert.

Aqui não poderíamos deixar de lembrar de Aristóteles quando diz que a política deveria ser a arte de fazer justiça. Mas que justiça é essa que condena um homem a prisão, deixando-o 19 anos preso, por roubar um pedaço de pão para aplacar a fome de alguém?! Posto em liberdade Jean Valjean nutri um ressentimento pela sociedade que o leva a cometer outro delito. Não é a prisão que irá transforma-lo, fazendo com que ele enfrente grandes obstáculos para cuidar de Cosette, mas a boa ação do religioso Bienvenu evitando que ele voltasse para prisão. 

Javert aparece implacável no seu papel de fazer cumprir a lei. A ele não interessa o que levou o indivíduo a chegar num determinado ponto, como no caso da pobre Fantine. O importante é combater de forma severa qualquer desvio de conduta. Quando ele descobrir que querer fazer cumprir a lei cegamente não tem sentido. Ainda mais diante do fato que nem sempre essas leis são justas, sua vida perde sentido e o seu final é trágico.

O romance vai avançando e o autor vai nos mostrando como a desigualdade social alimenta a revolta. Alguns partem para vida do crime como é o caso dos Thérnadier. Outros como o jovem Marius para militância política. Chegamos assim na guerra civil que coloca todos os miseráveis na mesma trincheira.

Marius surge como a figura do intelectual republicano que acredita na revolução como um meio de transformar a sociedade francesa sob o regime monárquico. De família aristocrática, rompe com esta em nome das suas convicções políticas. O pequeno Gavroche simboliza o povo, imaturo, sem consciência, aventureiro, que se sacrifica pela causa. Éponine lembra Fantine – a amante não correspondida que acaba se sacrificando pelo amado. Marius, volta para casa, se reconcilia com seu avô aristocrata (Gillenormand) e se casa com Cosette.

Esses personagens nos mostra que a aliança entre o povo e a burguesia, só favorece a burguesia.

“Muitos estavam mortos, enquanto a maioria da população simplesmente ignorava o apelo às armas de estudantes e operários e, aos poucos, voltavam à normalidade como se nada de mais grave houvesse acontecido em Paris e em vários outras cidades francesas. Dentro de poucos dias ou mesmo de horas, o derradeiro bastião de grandes transformações sociais e políticas sucumbiria sem deixar maiores lembranças.”

Certamente isso serviria de lição para os líderes da Comuna de Paris (1871). Que não teve melhor sorte que a revolta de 1832 descrita em Os miseráveis. Mas serve de inspiração ainda hoje para aqueles que sonham com outra sociedade. Entre eles Karl Marx ao desenvolver o seu materialismo histórico dialético.

“Cosette e Marius ainda fizeram menção de dizer muitas outras palavras, animá-lo, promessas tolas sobre um futuro que não mais interessava a Jean Valjean. Ele dirigiu-lhe um último olhar, aquela luz mágica do encantamento mais genuíno diante da felicidade de outros, eclipsando-se serenamente. Finalmente em paz”.

O final parece contradizer a tese do próprio autor de que somos maus por natureza. Jean Valjean no seu leito de morte encontra a paz que sempre procurou ao contemplar a felicidade daquela pela qual ele decidiu dedicar longos anos da sua vida. Ou seja, de forma genuína ele demonstrou amor pelo outro. O que talvez tenha sido apenas pelo seu encontro com o inevitável fim.

Pedro Ferreira Nunes – Especialista em Filosofia e Direitos Humanos. Atua como Professor da Educação Básica na Rede Estadual de Ensino do Tocantins no CEMIL Santa Rita de Cássia.